A caixa A Arte de Federico Fellini, da Versátil, traz dois DVDs com  três filmes do diretor – Satyricon (1969), Roma (1972) e A Voz da Lua  (1989), além do documentário Ciao, Federico!, de Gideon Bachmann. Este,  na verdade, é um making of informal das filmagens de Satyricon.

Satyricon  e Roma são, hoje, quase unanimidades críticas. Admite-se que Fellini  tenha, num caso, renovado a ideia de adaptação literária e, no outro,  colocado de cabeça para baixo a concepção do que seja um documentário.  Já sobre A Voz da Lua, último trabalho do autor (ele morreria em 1993),  pesam alguns reparos. Esse filme, inspirado no romance Il Poema dei  Lunatici, de Ermanno Cavazzoni, é tido como obscuro, pessimista, legado  um tanto pesado do artista que produzira obras como A Doce Vida (1960) e  81/2 (1963), para não falar de Amarcord (1973), talvez seu filme mais  popular.

Satyricon é livremente inspirado no relato de  Petrônio Árbitro (século 1.º a.C.) sobre a Roma de Nero. As histórias,  dispostas em mosaico, têm como fio de ligação as aventuras de dois  malandros, Encolpio (Martin Potter) e Ascilto (Hiram Keller), que  percorrem o império e se metem em mil aventuras.

Há uma  cena magnífica, quando as figuras dos personagens se transformam em  afrescos de uma parede em ruínas. Para Fellini, Satyricon é isso –  fantasiosa reconstrução de um modo de vida do qual restam apenas  fragmentos (o próprio livro de Petrônio não nos chegou intacto). Diante  daquela cultura antiga, da Roma em que brotam relíquias arqueológicas,  só podemos usar a imaginação para reconstruir um estilo de vida sobre o  qual temos vagas alusões. A sensualidade, a loucura dos imperadores, a  convivência com deuses e mitos, a crueldade, os banquetes pantagruélicos  - tudo isso surge da fantasia delirante de Fellini. É a sua “verdade”  sobre a Roma antiga, e o filme é tão convincente, contém tanto impacto  visual e conceitual, que passa a ser a “nossa” verdade, também.

Já  em Roma, Fellini passa para a cidade nos 1970. Da Roma mítica de  Satyricon à Roma contemporânea, com sua loucura urbana e seus encantos. A  cidade é fundamental na própria história de Fellini, que saiu jovem da  sua Rimini provinciana para tentar a sorte na capital.

Tornou-se jornalista, passou a frequentar o mundo do cinema, e o resto já se conhece.

Acontece  que Fellini não faz um documentário “objetivo” sobre uma cidade. Ela  aparece, sob sua lente, com as cores da memória, e também da fantasia.  Esse filme estupendo é lembrado por muitas cenas marcantes. Uma delas, o  sarcástico desfile de moda eclesiástico.

Outra, a mais  bela e triste, quando a escavação de um dos túneis do metrô é detida por  que descobrem um importante sítio arqueológico, uma residência antiga,  com afrescos nas paredes. Esta é Roma, cujo passado teima em ressurgir  no presente, embora talvez esses tempos remotos não resistam ao contato  com os devastadores tempos modernos. Esse é um ponto de contato entre  Satyricon e Roma: ambos podem ser vistos como comentários recíprocos e  complementares. Prova de que a inteligência de Fellini produzia uma obra  em progresso, cujas peças são partes de uma mesma meditação.

E  não sempre uma reflexão solar, mas às vezes cheia de sombras e dúvidas.  Neste ponto chega Fellini ao término do seu percurso, A Voz da Lua.  Temos aqui uma imersão na loucura, por intermédio dos lunáticos Ivo  Salvini (Roberto Benigni) e do ex-prefeito Gonella (Paolo Villaggio).

Salvini  é tentado por vozes que saem dos poços e pela presença magnética da  Lua. Gonella sente-se vítima de uma conspiração. Em torno deles, a  vulgaridade a que chegou a sociedade italiana, segundo a ótica de  Fellini. Conquistadores banais, mulheres exorbitantes, políticos e  intelectuais vazios. O barulho, o excesso, a cafajestice.

Tudo simbolizado pela besta-fera de Fellini – a televisão.

Considerado  soturno, A Voz da Lua é temperado, no entanto, por momentos sublimes.  Como a valsa dançada por Gonella em meio a uma rave infernal, que se  detém para assistir à dança do casal ao som de Danúbio Azul. Ou a  ”descoberta” de Salvini sobre as mulheres, que são todas diferentes e,  no entanto, unas. Como se intuísse uma misteriosa essência feminina  através do sapato de Cinderela que se ajusta aos pés de todas elas.

Há  também uma linha de sutil análise musical no filme. Começa pelo  personagem que toca o “intervalo proibido” em seu instrumento e vê a  mobília da casa se mexer. O trítono, que provoca uma intensa  dissonância, era proibido pela Igreja na Idade Média. Era o “intervalo  do diabo”. No entanto, foi incorporado pela música moderna e é um dos  intervalos favoritos do heavy metal – justamente o gênero tocado na rave  na qual vão parar Salvini e Gonella. Por fim, depois da música  infernal, da algaravia de palavras sem sentido, o apelo de Salvini: “Se  fizermos um pouco de silêncio, talvez sejamos capazes de compreender  alguma coisa”.

Talvez

Esse apelo ao  silêncio é o mais dramático já feito numa obra de Fellini. Ele o via  como um imperativo para deter um pouco a corrosão da vida social e das  individualidades. E olhe que não conheceu o admirável mundo digital  surgido em sua plenitude apenas após sua morte.