A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça, 30, o Projeto de Lei 490/2007, o chamado PL do marco temporal. Por 283 votos a 155, o plenário da Casa impôs uma derrota ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar de governistas terem tentado adiar a votação, a proposta contou com votos de parlamentares de partidos da base. O principal ponto do projeto é estabelecer em lei que somente territórios ocupados por indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988 podem ser demarcados como terras indígenas.

O texto, que será ainda analisado pelo Senado, era uma demanda dos ruralistas e foi votado sob protesto de parlamentares de esquerda e movimentos indigenistas. Governistas já falam em recorrer à Justiça contra a votação em que saíram derrotados.

Na prática, se promulgada, a lei vai paralisar todos os processos de demarcação em andamento. Há pelo menos 303 em tramitação. Hoje, o Brasil tem 421 terras indígenas homologadas. Elas somam 106 milhões de hectares e têm cerca de 466 mil indígenas.

Com a aprovação, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e a cúpula da Casa pretendiam passar um recado ao Supremo Tribunal Federal. A Corte retomará um julgamento sobre demarcação de terras indígenas na próxima semana. “Tenho certeza de que a sinalização da Câmara, aprovando esse projeto, fará com que Supremo reflita e paralise essa querela jurídica que está marcada para se julgada em junho”, afirmou Arthur Maia (União Brasil-BA), autor do texto aprovado. “Estamos mandando a nossa mensagem ao Supremo, a de poder harmônico, mas altivo. Não podemos aceitar que outros Poderes invadam nossa prerrogativa.”

Os deputados favoráveis à proposta argumentam que ela foi construída à luz do julgamento do Supremo sobre a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 2009. Na ocasião, o marco temporal foi considerado. Para eles, as condicionantes daquele julgamento devem ser tratados como paradigma.

Os contrários ao texto, porém, ressaltam que o debate não foi esgotado pelo Supremo e que há diversos precedentes que afirmam que o marco temporal e as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol são aplicáveis somente para a demarcação daquela terra indígena específica.

Requerimento

No início da noite, o plenário da Casa já havia imposto um primeiro revés ao governo Lula ao rejeitar, por 257 votos a 123, o requerimento para retirada de pauta do projeto. A liderança do governo havia orientado a base a votar a favor da retirada, mas conseguiu menos da metade dos votos contra a remoção do projeto. O resultado da primeira votação já indicava que o governo não teria votos para barrar a aprovação do PL.

O projeto de lei era o único item da pauta da sessão plenária de ontem. Lira confirmou que a votação tinha por objetivo antecipar o Supremo, que programou a análise do tema para o próximo dia 7 de junho.

“O Congresso precisa demonstrar ao Supremo que está tratando a matéria com responsabilidade”, disse o presidente da Câmara. “Não temos nada contra os povos originários, mas estamos falando de 0,2% da população brasileira em cima de 14% do território.”

Repercussão geral

O julgamento previsto no Supremo tem caráter de repercussão geral, ou seja, a decisão valerá para casos similares em todo o País. A decisão diz respeito a uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng. Eles requerem a demarcação da terra indígena Ibirama-Laklanõ, onde também vivem indígenas das etnias guarani e kaingang.

O julgamento do marco temporal começou em agosto de 2021, mas foi interrompido por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. O placar está em 1 a 1.

O relator da ação é o ministro Edson Fachin, que se posicionou contra a tese do marco temporal. Em seu voto, o ministro afirmou que “a data da promulgação da Constituição de 1988 não constitui marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas”.

Já o ministro Kassio Nunes Marques divergiu do relator e se manifestou pela aplicação do marco. Segundo ele, reconhecer pedidos de posse posteriores à data de promulgação da Constituição “implicaria o direito de expandi-las ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário”.

Na semana passada, os deputados aprovaram um pedido para urgência na tramitação do projeto de lei, o que dispensa a passagem da matéria por comissões e garante celeridade na aprovação. Na ocasião, a liderança do governo liberou a base aliada para se posicionar como quisesse, apesar de o mérito do texto ir na contramão da bandeira do Palácio do Planalto, de indígenas e de ambientalistas, que fazem parte da base de apoio de Lula.

Pelo marco temporal, uma terra indígena só poderia ser demarcada se fosse comprovado que os indígenas estavam no local na data da promulgação da Constituição – no dia 5 de outubro de 1988. Quem estivesse fora do local nesta data ou depois dela não poderia pedir a demarcação.

A votação do marco temporal se insere em um contexto de reveses para o governo na área ambiental e mais especificamente para a ministra Marina Silva. Dentro do governo, contudo, algumas dissidências ficaram aparentes. Enquanto Marina e a ministra Sônia Guajajara (Povos Indígenas) são contra o PL, o ministro Carlos Fávaro (Agricultura) defendeu o marco temporal durante uma entrevista ao programa Roda Viva na segunda-feira retrasada.

Deputados avaliam que a votação de pautas que contrariam as posições do Executivo, como o próprio marco temporal, é reflexo da insatisfação da Câmara com a demora na liberação de cargos e emendas.

‘Atropelo’

Grupos de indígenas contrários ao projeto de lei tentaram pressionar os deputados e promoveram ontem atos em Brasília e em São Paulo, onde bloquearam a Rodovia dos Bandeirantes.

O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (sem partido), disse confiar que o PL do marco temporal vai tramitar sem “atropelo” no Senado. “O tema será tratado com a prudência necessária e com o devido respeito”, escreveu Randolfe no Twitter, antes da votação na Câmara.

Proposta aprovada flexibiliza contato com comunidades isoladas

O Projeto de Lei 490/2007, que torna necessária a ocupação de uma terra indígena até 5 de outubro de 1988 para que ela possa ser demarcada, inclui outros pontos polêmicos, que contribuíram para dividir o Congresso. Embora a chamada tese do marco temporal seja o principal item, o PL altera políticas indigenistas adotadas há décadas no País. Uma delas reacende a possibilidade de contato com povos que vivem em isolamento voluntário, prática que marcou a relação da ditadura com indígenas.

A proposta implementa também a possibilidade de contato com indígenas isolados para ações de “utilidade pública”, inclusive por meio de “entidades particulares, nacionais ou internacionais”, contratadas pelo Estado.

O texto não especifica quais seriam as atividades de utilidade pública admitidas. Por se tratar de expressão genérica, parlamentares e movimentos contrários ao projeto temiam um contato forçado sob a justificativa de realização de obras e até de missões religiosas em localidades habitadas por povos sem contato com a sociedade do entorno.

A política de não contato com povos isolados predomina no Brasil desde o fim dos anos 1980. Com condições biológicas específicas, grupamentos indígenas podem ser exterminados por doenças como a gripe e o sarampo. A Constituição de 1988 reconhece “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” dos indígenas, e o Brasil é signatário de normas internacionais que reconhecem a autodeterminação dos povos indígenas.

Contato

Na ditadura, milhares de indígenas morreram em consequência da estratégia de atração e contato adotada para viabilizar estradas e hidrelétricas. Entre os casos mais simbólicos estão o contato com os panará para a construção da rodovia Cuiabá-Santarém, em meados dos anos 1970, e com os uaimiri-atroari, na obra da rodovia Manaus-Boa Vista. Estima-se que morreram mais de dois terços desses grupos. A mortalidade também marcou os grupos awá, no Maranhão, durante a construção da ferrovia Carajás, nas décadas de 1970 e 1980. (COLABORARAM IANDER PORCELLA, GIORDANNA NEVES, CAIO SPECHOTO, ISABELLA ALONSO PANHO E BRUNO LUIZ)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.