Um dos poucos negros no comando de uma grande multinacional, ele decidiu criar um programa para ajudar executivos negros a chegar ao C-Level.

Antes de vir para o Brasil, a cor da pele nunca foi problema para Kwami Alfama Correia. Nascido em Cabo Verde, na costa africana, ele cresceu vendo líderes negros em seu país. Mesmo quando foi estudar em Portugal, essa não era uma questão presente. Só quando entrou na Universidade Federal de Itajubá (MG), sentiu um estranhamento. Era um dos três raros negros da faculdade. Graduado em engenharia mecânica, com mestrado em engenharia de produção, MBA em marketing, ele passou por várias empresas nos segmentos agroindustrial, de bens de consumo e alimentos. Mas não encontrava outros negros em postos de liderança. Hoje, comanda a subsidiária da multinacional francesa Tereos Amido & Adoçantes Brasil, líder global nos mercados de açúcar, álcool, etanol e amidos. E carrega um propósito: ajudar executivos negros a chegar a cargos C-Level e a postos em Conselhos de Administração. O Pactuá, mistura da palavra pacto com patuá, visa mudar a sorte dos profissionais pretos e ajudá-los a superar barreiras.

DINHEIRO — Como você chegou ao Brasil?
KWAMI ALFAMA CORREIA — Nasci na África em Cabo Verde, que foi colônia portuguesa. Mudei para Portugal quando fui estudar em Coimbra. Morei até os 19 anos lá. Meu sonho era ser engenheiro da Nasa. A possibilidade de uma viagem ao espaço me atraia bastante. Ai fiz vestibular para engenharia mecânica e, através de um intercâmbio entre países de língua portuguesa, entrei na Escola Federal de Engenharia de Itajubá, em Minas Gerais.

E o que chamou atenção por aqui?
Quando comecei a faculdade me surpreendi, porque só tinha uma mulher e duas pessoas negras além de mim. E fui entendendo que essa era a realidade no Brasil, o que se repetiu em várias empresas em que trabalhei. E ao longo dos anos sempre fui um dos únicos, senão o único negro em posições de liderança.

Quanto isso o incomodava?
Havia uma grande pergunta na minha cabeça: por que num País com tanta diversidade isso não se refletia nas escolas ou empresas? Minha mãe é branca, tenho filhos brancos, tenho tios loiros. Convivia com negros e brancos desde pequeno. E isso nunca foi um problema. Mas quando vim para, cá isso mudou. Uma vez conversando com um amigo que foi CEO de várias empresas, ele disse que eu era praticamente o único CEO negro no País. Aí eu parei e comecei a pensar mais seriamente. Uma coisa era eu sentir isso. Outra era alguém que conhecia bem o mercado falar isso. Nesse momento eu vi que precisava fazer algo. E na pandemia, durante as reuniões on-line, eu procurava no vídeo por pessoas pretas e quase não achava. E isso me incomodou ainda mais.

“Levantei uma pesquisa que mostra que entre as 500 maiores empresas do Brasil apenas 4% delas têm negros na liderança” (Crédito:Istock)

E o que você fez?
Fui levantar dados e encontrei uma pesquisa da Spencer Stuart com as 500 maiores empresas do Brasil e descobri que apenas 4% delas tinham negros na liderança. Nos Conselhos de Administração esse número é tão pequeno que nem entrava na conta. E as iniciativas para mudar vinham na forma de abertura de vagas para jovens trainees, nunca para níveis superiores. Aí resolvi criar o Pactuá.

Começar pela base não basta?
Mais do que trabalhar na base é preciso trabalhar o topo da pirâmide para mudar as coisas. Quando eu estudava, havia poucos ou nenhum estudante negro nas faculdades. Hoje, muitos anos depois, eu tenho uma filha fazendo medicina e na sala só tem ela de negra. Por isso, é preciso criar um pacto para acelerar a ascensão desses profissionais nas organizações.

Onde está a falha?
As empresas falham no processo de desenvolvimento dessas pessoas. Os negros já estão chegando mais até o nível gerencial. Mas aí eles começam a parar, por causa das barreiras da formação, como falar outras línguas ou gestão de negócios, tudo que depende de cursos caros. E, se as empresas não criarem condições, elas não conseguem superar essas etapas. É preciso desenvolver esse potencial, porque dificilmente essas pessoas vão conseguir avançar sem ajuda.

E como o Pactuá vai ajudar nisso?
Em junho de 2021 começamos a estudar como faríamos. Abrimos uma primeira turma com 14 executivos negros que estão mais próximos de um C-Level. Mostramos as barreiras que temos de superar no dia a dia para chegar a posições de comando. E indicamos os caminhos para superar e evoluir na carreira. Além disso, há a possibilidade de aumentar o networking. A ideia é dar condições para que ultrapassem esses limites, criem uma massa crítica capaz de influenciar nas decisões das empresas e coloquem em pauta a discussão para a diversidade. Isso passa desde a contratação, quando só há concorrentes de escolas de ponta, onde o negro não está, até a promoção.

Existe também uma barreira interna?
Sim. É a síndrome do impostor, que afeta tanto as mulheres e também atinge as pessoas negras. É tão difícil se ver representado, que ela cria uma barreira interna. Quando eu mostro pessoas negras de sucesso eu provo que é possível chegar lá. Eu mesmo, em alguns momentos, também tinha um enorme receio de mostrar o que sabia.

Ver líderes negros no seu país ajudou?
Sim, isso fez uma grande diferença. No meu país, a população é formada por 95% de pessoas pretas.

Isso o motivou a quebrar essas barreiras?
Há um ano e meio eu olhava para meu círculo de amizades e só tinha pessoas brancas. Eu não tinha mais amigos negros desde que comecei a subir na hierarquia. O reflexo da empresa estava também na minha vida pessoal. Cansei de ser o único na empresa, no condomínio, no clube. Mas ficava reticente de usar minha posição para me tornar uma referência. Não queria essa capa de super-herói. Criar o Pactuá foi uma necessidade e me fez um bem enorme. Hoje percebo que estava perdendo a oportunidade de conviver com a diversidade.

Como as empresas podem mudar isso?
As empresas precisam expandir suas fronteiras. Fazer a mesma coisa leva sempre ao mesmo resultado. A diversidade do pensamento é que vai impulsionar inovações.

E agora quais são seus planos?
Acho que tenho muita coisa a aprender, estou no terceiro ano na liderança de uma grande empresa. Agora me preparo também para fazer parte de Conselhos de Administração, após um curso para formação de conselheiros na Fundação Dom Cabral. Estou organizando o Instituto Pactuá e me preparando para levar mais diversidade às empresas. Um negro dentro de um Conselho traz uma perspectiva diferente para as corporações. É lá que se discute a estratégia e a perenidade da empresa, por isso é importante que tenha diversidade para acelerar a mudanças a partir desse colegiado. É imprescindível que a mudança venha do topo das corporações.

Por que a necessidade de envolver o topo?
Por exemplo. Ações como a do Magazine Luiza, quando decidiu abrir vagas para negros, mostra que quando a decisão vem do Conselho as resistências são quebradas mais fortemente. E essa estratégia sólida ajudou quando vieram os ataques. O único problema é que são ações para entrada, o que é diferente de colocar negros nos Conselhos. Até um trainee chegar ao comando tem mais de 20 anos para se ter uma administração mais plural. É muito tempo. Por isso é preciso mudar o topo das empresas. Está na hora de o Brasil ser o país desse futuro que nunca vem.

“Ações como a da Magazine Luiza, quando decidiu abrir vagas só para negros, mostra que se a decisão vem do Conselho as resistências são quebradas” (Crédito:Divulgação)

Até onde o discurso da diversidade está alinhado com a prática?
As empresas maiores têm esse assunto mais claro, até por conta das práticas de ESG. Mas a maioria das empresas no Brasil é formada pelas pequenas e médias, que empregam a maior parte da população. Por isso o desafio é imenso e as grandes companhias têm um papel importante, porque são elas que levam essa cultura para fornecedores e clientes.

Essas práticas começam pelo RH?
Quem fala que RH cuida das pessoas não tem uma cultura de gestão. Não é o RH que cuida das pessoas. A empresa é que estabelece seus valores, que discute os comportamentos que são ou não aceitos. É fundamental criar um ambiente de segurança e de diversidade, para que as pessoas se sintam confortáveis para colocar seus pontos. Onde as pessoas não precisam se esconder, elas podem inovar e trazer resultados para a empresa.

Não apostar na diversidade será um risco para as empresas?
Sim. As novas gerações já começam a questionar empresas que não têm diversidade e não protegem o meio ambiente. Está surgindo um novo consumidor, que vai escolher a marca com práticas sociais e ambientais fortes. E se ele não se identifica ele não compra, e a empresa quebra.

Essa mudança passa pela estrutura inteira?
Empresas que não evoluem nesse ponto de comando não evoluem no mercado.

Qual seu conselho para chegar ao topo?
Eu aconselho sempre a capacitação. É preciso ter capacidade de aprender, desaprender e aprender o tempo todo. E se relacionar com pessoas diferentes. Use a diversidade a seu favor.