No próximo sábado, quando
deixar a cela cinzenta em que foi encarcerado por 10 dias na quarta-feira 3, o economista argentino Domingo Cavallo terá de redigir um novo currículo. Nele, constará que além de duas vezes ministro da
Fazenda e criador do regime de paridade cambial entre o dólar e o peso, ele agora é também um ex-detento, processado por autorizar contrabando de armas em 1995. Ainda não se sabe como essa nódoa irá repercutir em sua bem-sucedida carreira de palestrista internacional, mas é certo que sua vida não será a mesma. Na manhã em que recebeu voz de prisão, durante um depoimento que se antecipava protocolar perante o juiz Julio Speroni, o homem famoso por sua arrogância reagiu perplexo. ?Eu estou sendo preso??, balbuciou. Não gritou, como já fizera tantas vezes em público. Não chamou seus adversários de imbecis. Tinha viagem marcada naquele dia para os Estados Unidos, onde sua mulher já o esperava. Ainda assim abaixou a cabeça e foi conduzido docilmente por policiais de jeans ao Esquadrão Buenos Aires, no bairro do Retiro. Lá pediu um calmante. ?Senão não conseguirei dormir?, disse aos médicos que fizeram seu exame de admissão. Embora seu advogado diga que o ânimo de Cavallo é bom, quem viu seus olhos arregalados no momento da prisão diz que ele parece arrebentado.

Como tudo que acontece na Argentina nestes dias, a prisão do ex-ministro de Carlos Menem e Fernando de la Rúa foi um episódio rocambolesco, que envolve uma boa dose de política e oportunismo legal. Cavallo está encarcerado porque assinou um documento permitindo a exportação de armas para a Venezuela ? armas que acabaram sendo contrabandeadas para o Equador. Seu ex-chefe, Carlos Menem, amargou prisão domiciliar pelo mesmo motivo, mas a Justiça o libertou. O mesmo ocorreu com o ministro da Defesa, responsável direto pela operação. Logo, ninguém imaginava que Cavallo fosse preso. No ano passado, quando era o superministro de De la Rúa, a simples idéia de interrogá-lo por contrabando teria soado impatriótica. Agora é o contrário. Apeado do poder, com as pessoas batendo panelas nas ruas contra o curralito criado por ele, Cavallo tornou-se um alvo fácil. Para enfatizar a magnitude da injustiça, seu advogado comparou o economista a Perón e Sarmiento, heróis da pátria que a seu tempo também amargaram a prisão e o exílio. Certamente é assim que Cavallo se percebe.

Ainda que por linhas tortas, essa prisão traz embutida uma sugestão interessante: a de se criar uma lei de gestão responsável para os economistas de governo. Cavallo está sendo preso por suposto contrabando, mas poderia, sem nenhuma injustiça, ser processado por gestão temerária da economia, com base nos enormes prejuízos causados por suas políticas ao Estado e aos cidadãos. Ele não seria o primeiro caso de economista que pôs seu ego, sua carreira e suas crenças ideológicas acima do país. Aqui mesmo no Brasil não faltam casos de teimosia cambial que custaram bilhões de dólares e milhões de empregos. Se um médico causasse uma fração desse desastre estaria sem licença. O mesmo vale para os engenheiros. Por que então os economistas, que afirmam praticar uma ciência, não estão sujeitos às mesmas normas de vigilância pública? Ao poder que o discurso econômico confere nos dias de hoje deveria corresponder uma responsabilidade equivalente. Preso em Buenos Aires, Cavallo ainda pode se refugiar na idéia de que está sendo vítima de um abuso. Se fosse encarcerado por imperícia econômica não teria desculpas ? nem outros convites para palestrar no exterior.