Cantor não se tornou um ícone LGBT, mas seu papel foi importante para conscientizar sobre a aids no Brasil, apontam especialistas. No Rio, exposição celebra seu legado.”Brasil, mostra a tua cara” ouvem diariamente os telespectadores da novela Vale Tudo, remake exibido atualmente pela Rede Globo. A música foi composta pelo poeta do rock brasileiro, Cazuza, como ficou conhecido Agenor de Miranda Araújo Neto (1958-1990), famoso artista morto há exatos 35 anos, em consequência da aids.

Por que sua obra segue viva tanto tempo depois? Para especialistas, a explicação está tanto na qualidade de seu trabalho e na potência do personagem rebelde que ele próprio foi quanto no esforço da memória: ou seja, nas iniciativas que contribuem para a perpetuação de seu legado, seja por regravações constantes de suas composições, seja por ações específicas.

De acordo com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), Cazuza deixou 253 obras próprias e 332 gravações. Em cartaz em shopping center no Rio de Janeiro, a exposição Cazuza Exagerado é a maior já dedicada ao cantor – nas duas primeiras semanas, recebeu um público de 17 mil pessoas.

“Cazuza não perdeu a relevância artística e musical segue sendo lembrado através de filmes, livros e tributos”, comenta o relações públicas Horácio Brandão, um dos idealizadores da mostra. “Artistas de diferentes gerações da MPB, do pop, do sertanejo e do rock, entre outros estilos, seguem gravando a rendendo-lhe homenagens.”

Nos streamings, é um artista em evidência. Na plataforma Spotify, por exemplo, são 3,8 milhões de audições mensais, o que o deixa em nível equivalente ao de Marisa Monte, por exemplo, cantora esta que segue produzindo.

Voz da “geração perdida”

Nascido em 1958 no Rio, Cazuza se tornou conhecido inicialmente como vocalista e principal letrista da banda Barão Vermelho, no qual atual de 1981 a 1985. Em seguida, empreendeu carreira solo.

Professor de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor da biografia Cazuza: Segredos de Liquidificador, o pesquisador Rafael Julião acredita que a relevância do artista está em ter conseguido “fazer a crônica” de um tempo histórico marcado pela contracultura, pelo sonho da juventude e pela ânsia de transformar o mundo. “Ele marcou o desejo de uma geração diante do sonho frustrado. Essa mensagem conserva uma potência.”

A longevidade de sua fama está na forma como ele “encarnou o espírito de uma era” ao mesmo tempo “em que abordava questões profundamente humanas e atemporais”, argumenta a especialista em projetos culturais Gisele Jordão, coordenadora do curso de Cinema e Audiovisual da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

“Ele era uma figura multifacetada: poeta, roqueiro, rebelde e, paradoxalmente, extremamente vulnerável. Essa combinação única permitiu que ele falasse de liberdade, afetos, contradições e o combate à hipocrisia de uma maneira que ainda hoje foca e ressoa com as pessoas”, analisa ela.

Bissexual, ele teve um curto, porém, intenso relacionamento conturbado com o músico Ney Matogrosso – e este momento é retratado no filme Homem com H, cinebiografia de Matogrosso lançada neste ano.

“Fui completamente apaixonado, mas era difícil conviver com os dois Cazuzas que havia nele”, declarou Ney Matogrosso em entrevista de 2024. “No lado público, se mostrava agressivo, louco, bêbado e cheirava muito pó. Já na intimidade, era o oposto. Foi uma das pessoas mais encantadoras que conheci.” O namoro durou três meses.

Causas e bandeiras

Para ativistas LGBT, contudo, Cazuza não é visto como um ícone porque nunca levantou a bandeira da causa. “Gosto de Cazuza como compositor e cantor, mas discordo dele por seu mutismo e por não ter falado nada explicitamente sobre homossexualidade e movimento gay”, diz o antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB) e professor aposentado na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Mott afirma que o artista “no fundo era um gay egodistônico e egoísta” e, como outros, não percebeu “o papel crucial de apoiar a militância” da causa.

Jordão, por sua vez, acredita que mesmo ele não tendo usado nenhum termo para se referir ao cenário LGBT, “o impacto de sua postura pública é inegável” para o segmento. Ela atribui à época essa ambiguidade de posicionamento. “Cazuza viveu sua bissexualidade com naturalidade e sem se esconder, num período de enorme preconceito.”

O que parece consenso, contudo, é a importância de Cazuza para a conscientização sobre a existência do vírus da aids e a importância dos cuidados para prevenir a doença. “Ele não apenas falou sobre sua condição, mas usou sua vasta visibilidade para quebrar o silêncio em torno da doença.”

Em 1989, foi capa da revista Veja, abordando o fato de ser soropositivo. Para Jordão, isso teve um “impacto massivo”. “Naquele contexto, a simples existência de alguém como ele, jovem, famoso, talentoso, vivendo com HIV e sem vergonha de quem era, já era, por si só, um ato político potente”, argumenta Jordão.

Para o filósofo Beto de Jesus, um dos pioneiros do ativismo LGBT no Brasil e diretor para o Brasil da Aids Healthcare Foundation, a entrevista publicada pela revista semanal foi “avassaladora”. “Trouxe a realidade de que a aids estava atingindo todas as pessoas. Ele teve a coragem de revelar isso, falar das dificuldades e do estigma da discriminação”, comenta.

De 1990 a 2020, os pais de Cazuza, a filantropa Luciana Araújo e o empresário e produtor musical João Araújo, mantiveram a ONG Sociedade Viva Cazuza, mantida com os direitos autorais da obra do artista. O foco principal da entidade era a assistência crianças e jovens soropositivos.