Já era um começo de tarde tenso na Cracolândia, região central da capital, nesta quinta-feira, 23, por causa de um confronto entre policiais e uma multidão, quando um grupo de fotógrafos começou a gritar em desespero. Uma poça de sangue estava no chão, em uma calçada da esquina da Alameda Barão de Piracicaba com a Rua Helvétia, e era possível ver um homem sendo carregado, socorrido pelos moradores de um hotel instalado ali, ilhados entre a troca de pedras e bombas feitas por policiais militares e os frequentadores do “fluxo”, a concentração de usuários de crack que caracteriza a região.

“Acertaram o fotógrafo”, “acertaram o fotógrafo”, gritavam os homens com câmeras na mão, andando a esmo enquanto o confronto ainda continuava.

O homem sendo carregado era o fotógrafo Dario de Oliveira, da agência Código 19. Segundo a Santa Casa de Misericórdia, que o recebeu minutos depois, ele foi atingido por “disparo de arma de fogo” na perna. Foi atendido, passou por exames mas, até o fim da tarde, não tinha previsão de alta.

Oliveira foi o único baleado por causa da sorte de um de seus colegas. Eram para ser dois os feridos. Marcelo Chello, fotógrafo profissional que também registrava a ação, foi atingido na mesma hora que Oliveira. A diferença é que a bala que acertaria sua perna parou no celular, no bolso esquerdo de sua calça jeans. A peça de roupa ficou furada. O celular, destruído. Mas Chello estava bem.

“Deve ter ficado sim”, disse, ao ser questionado se a perna estava roxa. Ele ainda não tinha visto. Estava preocupado com a câmera, instrumento de trabalho, que parecia quebrada. E um tanto atônito. Pediu para dois colegas avisarem sua mulher que estava bem.

Chello contou que não sabia de onde havia vindo o disparo. Ele não sabia dizer se era do fluxo e suspeitava de um segurança que havia visto instantes antes. Afirmou não saber se poderia ser da PM, também, mas acreditava que não.

“A gente infelizmente está sujeito a esse tipo de coisa quando trabalha”, lamentou o fotógrafo, enquanto conversava com os colegas de TV, de rádio, de jornais e das agências de notícias nacionais e internacionais que estavam lá para relatar o conflito. Brincou ser estranho virar “personagem” — jargão jornalístico que descreve as pessoas entrevistadas durante uma matéria.

Tiros

A conversa calma de Chello ocorreu cerca de meia hora após o fim da confusão. Quando os fotógrafos foram atingidos, no entanto, o clima voltou a ficar tenso.

O disparo de arma de fogo fez os policiais militares que atuavam na retaguarda do confronto mudar de postura. Uns desabotoaram os coldres das armas, outros ficaram com pistola na mão. Um deles ficou paralisado na frente dos carros, com uma metralhadora amparada com os dois braços. Os agentes da linha de frente, com escudos, continuavam atirando bombas de efeito moral e disparando balas de borracha para fazer a turba recuar. Conseguiram, mas depois de levarem pedradas e rojões. A multidão recuou pela Rua Helvétia, ficando mais perto da Alameda Dino Bueno do que da Alameda Barão de Piracicaba.

Os policiais permaneceram agitados. Uma policial, com escopeta na mão, gritava “tentaram acertar o tenente. O tiro era para acertar o tenente”, enquanto apontava a arma para os moradores da Helvétia que, da porta das casas e de dentro dos bares viam, alguns até sentados, o confronto todo. Os moradores reclamaram de verem a arma apontada para eles.

Com o fluxo forçado a voltar para o lugar de sempre, a coisa foi se acalmando. A linha de frente de escudos de policiais recuou por volta das 14h30, e de repente correu para a Avenida Rio Branco. De lá, passado alguns instantes, foram embora, deixando apenas alguns policiais de vigilância. Os confrontos, intercalados, já duravam quatro horas.

O fluxo já estava em seu lugar “normal” e os jornalistas passavam retornos para suas redações, quando um grupo vindo do fluxo ensaiou uma aproximação. Diziam que iriam devolver celulares.

Durante o confronto, dois jornalistas tiveram seus celulares roubados. Um correspondente estrangeiro da Agence France-Presse e um repórter do portal G1. O primeiro teve o telefone roubado de dentro do bolso. O segundo, teve o equipamento levado de suas mãos enquanto ele filmava a ação.

“Vamos devolver o celular. Daqui para cá ninguém rouba ninguém”, dizia um rapaz, sem camisa e de bermudas, com várias tatuagens. “O seu é o quê? É iPhone 6? É o 7?” perguntava. Pouco depois, um dos celulares apareceu. Era o do correspondente. O portal G1 ficou no prejuízo.

A entrega do telefone acalmou os ânimos. Os rapazes do fluxo começaram a dizer que assistiam a alguns dos jornalistas que estavam ali. Meninas apareceram e foram cumprimentar com beijos uma repórter da Bandeirantes. “Sou sua fã”, disse uma das garotas à jovem repórter.

“E aí, acalmou?”, perguntou um dos rapazes a um oficial da PM que permanecia no local. “Da nossa parte sempre está calmo. Acalmou para vocês?”, devolveu o oficial. Havia acalmado.

Os frequentadores da área procuraram os repórteres para falar de pessoas feridas pelas bombas. Falaram de uma mulher, que estava grávida, que teria sufocado com os gases das bombas. Os policiais relataram sete agentes feridos. À reportagem, o tenente-coronel Alexandre Gasparian, comandante da área, confirmou cinco — foram levados para o Hospital da Polícia Militar. Mais tarde, a Secretaria Estadual da Segurança Pública soltou nota falando de seis.

No meio da tarde, já pelas 15 horas, o fluxo –que se assemelha a um cardume de pessoas girando na esquina da Helvétia com a Dino Bueno — já voltava à rotina. Pelas redondezas, os utilitários da Força Tática da PM ficaram circulando o bairro de vagar, esperando ver se havia acalmado mesmo.

Perto das 16h30, guardas-civis metropolitanos que também ficam na região chegaram a atirar bombas em usuários de crack da área em um princípio de novo confronto, que não se concretizou.

A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) divulgou nota em que “repudia, com veemência, as agressões sofridas por dois fotógrafos que faziam a cobertura” do confronto.