08/06/2004 - 7:00
Há algumas unanimidades ao redor de Chico Buarque de Holanda. A primeira: a coerência política e poética, ao longo de 40 anos de carreira, num País afeito a tenebrosas transações. Outra: a beleza de seus olhos verdes. A terceira: é o mais perfeito intérprete da alma feminina, e são elas que dizem isso. Cabe defender uma outra unanimidade ? ninguém retratou tão bem a trajetória
econômica do Brasil por meio de letras de canções. No próximo dia 19, Chico completa 60 anos de idade. Haverá uma avalanche de homenagens. Economistas
e historiadores poderiam engrossar as fileiras de louvações. Sua obra vale por
anos de pesquisas e estudos.
Dos primeiros tempos do Pedro penseiro que esperava o trem, em 1965, à Iracema que voou para a América em 1998 e tem saudade do Ceará, Chico narrou a dureza do arrocho salarial nos primeiros anos depois do golpe militar e a leva de imigrantes desempregados que foi para os Estados Unidos ? eram 800 mil em 1998. Desafiou os militares em 1970 ao dizer que, apesar deles, amanhã seria um outro dia. Cutucou o milagre econômico de Delfim Netto em 1971, nos olhos embotados de cimento e lágrima do operário em Construção. ?Toda essa coerência histórica não significa que Chico tenha produzido uma obra panfletária?, diz Adélia Bezerra de Meneses, professora de teoria literária da USP e da Unicamp, autora de um livro já clássico, ?Desenho Mágico ? Poesia e Política em Chico Buarque?. Adélia diz mais. ?Ele compôs canções líricas, que supostamente seriam alienadas, mas são peças de resistência ao opressor.? Nas palavras de Antonio Candido, um dos mais respeitados intelectuais do Brasil, ?Chico é uma grande consciência inserida num enorme talento?.
Nesse caminho, pode-se dizer que ele trilhou os passos do pai, Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil, de 1936, um dos tratados fundadores da historiografia do País. Para Antonio Candido, Sérgio foi o primeiro pensador brasileiro a deixar claro que só o próprio povo, tomando a iniciativa, poderia cuidar do seu destino. Era a tese central do que Candido chamaria de radicalismo da classe média ? falava do pai, mas poderia se referir ao filho. ?Chico olha para o futuro, quer saber o que será dos desvalidos, da romaria dos mutilados em busca de uma saída?, diz Adélia de Meneses. Era o que pensava Sérgio a respeito do brasileiro cordial, em sua definição mais conhecida ? não a cordialidade da bondade tola, mas sim do homem que reage com o coração, para o bem ou para o mal. Tal qual os personagens
das letras de canções que viraram clássicos da MPB. Como ressalta Adélia, a propalada autodefinição de Chico, extraída de Noite dos Mascarados, como ?seresteiro, poeta e cantor?, já não lhe cabe. Chico Buarque sessentão é uma
aula de economia e lirismo.