18/01/2002 - 8:00
Não há bem mais valioso para uma empresa de auditoria do que sua credibilidade. Não há ativo mais em falta, nos últimos tempos, nos balanços da Arthur Andersen, uma das cinco maiores firmas de auditoria do mundo. Abalada por um dos maiores escândalos financeiros da história ? a quebra da gigante americana do setor de energia Enron -, a consultoria corre o risco de ter o mesmo fim de sua cliente e desaparecer, levando consigo a reputação de todo o setor. Cabia à Andersen a missão de auditar as contas da Enron, sétima maior empresa americana e uma das preferidas dos analistas de Wall Street. Quando a atacadista de energia quebrou, no mês passado, descobriu-se que a empresa inflou lucros e omitiu dívidas na sua contabilidade nos últimos três anos. Segundo investigações do Congresso americano, os auditores sabiam pelo menos desde fevereiro do ano passado de problemas na contabilidade da empresa e nada fizeram. Estima-se que os processos de ex-empregados, acionistas e credores da Enron podem causar um estrago de US$ 10 bilhões nas contas da Andersen. Ameaçada, a companhia negocia fusão ou incorporação por outra das ?cinco grandes? da auditoria — KPMG, PricewaterhouseCoopers, Ernst & Young e Deloitte Touche Tohmatsu.
A crise da Andersen é um caso exemplar dos problemas envolvendo as práticas de auditoria em todo o mundo. Empresas de auditoria são pagas para checar se os livros de contabilidade dos clientes são confiáveis. Na Enron, a Andersen prestava dois serviços. Dava consultoria e auditava os números da empresa ao mesmo tempo. Era muito bem remunerada: só em 2000, a Enron pagou US$ 52 milhões pelo serviço, o que lhe deixou na confortável posição de segundo maior cliente da Andersen. Apesar disso, não fez seu trabalho corretamente. Por algum motivo, que ainda se investiga, a Andersen não deu nenhum alerta sobre os problemas na contabilidade da empresa. Dívidas milionárias estavam escondidas em contas de empresas associadas e não haviam sido incluídas no balanço — o que ajudava a engordar o contracheque dos executivos da Enron. Quando o ajuste foi feito no balanço da empresa, em novembro do ano passado, houve uma redução de US$ 591 milhões nos lucros acumulados de 1997 a 2000 e um aumento de US$ 628 milhões nas dívidas. Na melhor das hipóteses, os auditores não sabiam da fraude, o que revelaria incompetência. Se sabiam, ficaram calados para preservar o cliente, em detrimento de empregados, acionistas e credores da Enron.
Documentos destruídos. A suspeita mais forte é de que a Andersen tem algo a esconder. Quando soube que a SEC (a CVM americana) investigava a contabilidade da atacadista de energia, um sócio da Andersen, David Duncan, ordenou a destruição de milhares de documentos e de e-mails. ?A destruição de documentos é gravíssima. Eles são peça essencial de nossa investigação?, declarou Stephen Cutler, diretor da SEC. Numa tentativa de salvar a reputação da empresa, a Andersen demitiu Duncan, em tiro que pode sair pela culatra. Na quinta-feira, Duncan prestou depoimento no Congresso e deu o troco. Ele acusou a Andersen de conhecer os problemas na contabilidade da Enron pelo menos desde fevereiro do ano passado. Segundo ele, os sócios da Andersen cogitaram romper contrato com a Enron, mas preferiram continuar com a conta. A Andersen se defende e diz que se tratava de uma discussão rotineira. Em carta aberta publicada inclusive nos jornais brasileiros, o presidente mundial da Andersen, Joe Berardino, admitiu que na quebra da Enron houve ?erro de julgamento por profissionais? da empresa de auditoria e que foram tomadas medidas para que problemas não voltem a ocorrer. Ele prometeu novas iniciativas para recuperar a empresa. ?Estou consciente que a Andersen precisa reconquistar a confiança do público?, disse Berardino em audiência no Congresso americano. Além da quebra da Enron, a Andersen ainda enfrenta processos milionários pela bancarrota da maior seguradora australiana, HIH, e da Fundação Batista do Arizona, que deixou dívidas de US$ 590 milhões.
Sem punição. Não é só a credibilidade da Andersen que está em jogo. O escândalo provocou um acirrado debate sobre as práticas contábeis nos Estados Unidos, onde as empresas de auditoria são fiscalizadas por elas mesmas. Desde que esse modelo começou a funcionar, em 1977, nenhuma grande empresa foi punida rigorosamente, embora a SEC contabilize 250 investigações em andamento. Um dos primeiros alvos da mudança das regras deve ser o fim do sistema de ?dobradinha?, em que uma mesma empresa presta serviços de auditoria e consultoria para um cliente, como ocorreu no caso da Andersen e da Enron. A SEC considera que há conflito de interesses, ou seja, que uma empresa pode fazer vista grossa como auditora para favorecer os negócios como consultora. Há dois anos, o ex-presidente da SEC, Arthur Levitt, havia proposto a proibição para a ?dobradinha?, mas recuou diante da reação de Berardino. Na época, o presidente da Andersen argumentou que as ?cinco grandes? empresas de auditoria poderiam fiscalizar a si mesmas.
Além de proibir as empresas de prestarem serviços de auditoria e consultoria para um mesmo cliente, estuda-se criar um órgão independente para fiscalizar o setor. O que ocorrer nos Estados Unidos deverá repercutir no Brasil. O modelo brasileiro de fiscalização das auditorias é semelhante ao americano. A responsabilidade pela fiscalização no Brasil é dividida entre a CVM e o Conselho Federal de Contabilidade, organização formada pelas próprias empresas. Casos recentes levantaram dúvidas sobre a atuação das auditorias. Estão em andamento processos em que as empresas de auditoria como a KPMG e a PricewaterhouseCoopers tentam explicar como foram pegas de surpresa por rombos nos bancos Nacional e Noroeste. ?A fiscalização no Brasil melhorou, mas ainda está muito longe do padrão americano. O governo precisa dar mais poder e melhores condições de trabalho à CVM?, diz o advogado Ariosvaldo Mattos Filho, ex-presidente da CVM.