A Prefeitura de São Paulo planeja publicar ainda em setembro uma licitação para a instalação de 20 mil novas câmeras de monitoramento em até um ano e meio. Com custo anual estimado em R$ 70 milhões, o novo sistema deve englobar equipamentos com leitura automática de placas de veículos, detecção de movimento e reconhecimento facial – tecnologia de inteligência artificial cuja operação tem gerado críticas no Brasil e no exterior, por motivos que vão da violação a direitos individuais até casos de falsos positivos, principalmente envolvendo pessoas negras.

Especialistas em direito digital e organizações entrevistadas pelo Estadão defendem o banimento da tecnologia no País, assim como ocorreu em cidades norte-americanas, e avaliam que o edital dá margem para uma judicialização. Também há aqueles que defendem a aplicação responsável da biometria facial, chamam as críticas de “ludismo” e citam que em caso de eventuais problemas, deve haver o aprimoramento e não a suspensão do uso.

Ao Estadão, a gestão Ricardo Nunes (MDB) defendeu a eficiência do reconhecimento facial e argumentou que a aplicação envolverá também avaliação humana, por agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM). Propostas semelhantes no transporte foram suspensas recentemente pela Justiça, como as do Metrô paulistano e da concessionária da Linha 4-Amarela, que tinha o viés comercial.

O programa da Prefeitura paulistana foi batizado de Smart Sampa, cujo edital de fornecimento e manutenção de equipamentos e infraestrutura está em consulta pública na plataforma Participe+ (participemais.prefeitura.sp.gov.br) até esta sexta-feira, 2. A iniciativa é vinculada à Secretaria Municipal de Segurança Urbana, com duração prevista de cinco anos, prorrogável por outros cinco. No caso de câmeras de reconhecimento facial, estão previstas 500 unidades.

Segundo o secretário municipal adjunto de Segurança Urbana, Junior Fagotti, a iniciativa é uma estratégia de segurança pública, mas também envolverá outras funcionalidades, como de gerenciamento de tráfego e busca de desaparecidos, por exemplo. A depender da ocorrência, poderá ser acionada a polícia, a GCM ou outro tipo de agente público.

“O prefeito já vinha na discussão de melhorar o sistema de inteligência, de criar programas que tornem a cidade mais tecnológica”, aponta. Ele avalia que a iniciativa também poderá contribuir para a inibição de novos crimes, como furtos e roubos.

O programa é inspirado em exemplos dos Estados Unidos, como Chicago e Dallas. Por outro lado, cidades também norte-americanas, como Portland e São Francisco, baniram a tecnologia nos últimos anos.

A base de dados da plataforma será alimentada por secretarias, autarquias e concessionárias, não apenas com vigilância em vídeo, mas também com GPS, boletins de ocorrência, radares, estações climáticas, sensores de solo e hídricos (de áreas de risco), semáforos e outros. Também vai absorver os equipamentos privados cadastrados no City Câmeras, programa municipal que está em suspenso desde meados do ano passado após o fim da doação do serviço e abrange cerca de 3,5 mil câmeras.

Segundo a gestão Nunes, as câmeras serão dispostas em pontos de maior número de ocorrências e movimentação, com ao menos 50 unidades para cada um dos 96 distritos e 200 para cada uma das 32 subprefeituras paulistanas. A ideia é que o sistema também seja alimentado com imagens captadas por drones, câmeras corporais, câmera veicular e qualquer outra ferramenta.

No caso do reconhecimento facial, está previsto que as imagens de rostos possam ser arquivadas, com data, horário e endereço, inclusive com a detecção de faces parcialmente cobertas (como por óculos e barba, por exemplo). Outra funcionalidade é o rastreamento de pessoas consideradas suspeitas, com o monitoramento de movimentos e atividades, a partir de “diferentes tipos de características como cor, face e outras características”, diz o edital.

No Estado, o Laboratório de Identificação Biométrica foi lançado em 2020. Segundo o governo, o sistema utiliza o reconhecimento facial em imagens arquivadas e não aplica a biometria facial em monitoramento em tempo real.

Introduzida no País especialmente para a Copa do Mundo, a Olimpíada e outros eventos de grande porte há quase uma década, o reconhecimento facial está em uma segunda onda de difusão nos últimos três anos. Incentivos do governo federal, o fortalecimento da segurança pública na agenda política, esforços de empresas do setor e até a pandemia da covid-19 estão entre os motivos apontados por especialistas ouvidos pelo Estadão.

‘Cerca virtual’

Há a previsão de que o sistema identifique comportamentos considerados suspeitos, como a identificação de um tempo de permanência fora do habitual junto a um monumento (para detectar uma eventual pichação e casos de “mendicância em cruzamento”, segundo exemplos do edital). Nesses casos, um alerta é emitido no centro operacional e a gravação é ativada.

Um dos recursos disponíveis será o de “cerca virtual”, em que a movimentação dentro de determinado perímetro aciona um alerta dentro do sistema. Outro é o rastreio de objetos em uma área específica, por tamanho, tipo, cor e outros critérios apontados. O edital também exige que a tecnologia permita notificar automaticamente um agente mais próximo da ocorrência, como a identificação de um carro roubado, por exemplo.

Está previsto o rastreamento de veículos a partir de características diversas, a leitura de placas de veículos (incluindo motocicletas, com a consulta automatizada ao banco de furtados ou roubados), a coleta de informações de trânsito (como contagem e dados básicos, como placa, data, local e horário) e a identificação de estacionamento em local irregular. A ideia é que os dados sejam utilizados na geração de estatísticas que auxiliem na gestão do tráfego da cidade.

Também englobará a detecção de densidade e concentração de pessoas em áreas públicas. Além disso, o edital destaca que deverá ser possível adicionar novos padrões de análise na plataforma quando disponíveis, além de ser exigida a integração com as bases de dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), das polícias (boletins de ocorrência) e das bases estaduais e federais de carros roubados, desaparecidos, procurados e veículos. A ideia é que o material seja expandido também com parcerias privadas, como com aplicativos que envolvem fluxo de veículos, por exemplo, e a incorporação de dados das esferas estadual e federal.

A ideia é que o sistema permita ainda a realização de análise de dados, a fim de gerar gráficos analíticos e relatórios. O acesso à maior parte das imagens e informações estará restrito a servidores com login e senha cadastrados. “Todos os módulos devem ser pensados a fim de que cada secretaria consiga abrigar todos os seus processos de atividades dos órgãos a elas subordinados”, diz o edital.

No edital, é ressaltada a possibilidade de a plataforma se tornar um modelo replicável em outros municípios. O armazenamento das imagens será de responsabilidade do Município, por ao menos 15 dias corridos, prazo que poderá ser estendido. No caso de vídeos cortados e anexados a processos, o armazenamento será por tempo indeterminado e deverá migrar para outra plataforma após o fim do contrato.

Além disso, a licitação exigirá o fornecimento de ao menos 40 “salas de situação” móveis (em carreta, trailer, ônibus ou micro-ônibus), com mesa controladora de câmera, notebook operacional e três telas. O objetivo é a utilização em grandes eventos.

O cronograma de implantação é dividido em três fases. Até seis meses, está previsto o início do funcionamento da plataforma, a operação de ao menos 5 mil novas câmeras e a entrega do centro operacional. O número de câmeras instaladas deverá dobrar em um ano e, depois, atingir o total de 20 mil em um ano e meio.