03/08/2025 - 7:15
Brutalidade, impunidade e apagamento marcam a longa história de violência contra populações indígenas e ribeirinhas. Relembre cinco casos recentes marcantes.Às margens dos rios e nas trilhas de florestas, histórias que o tempo tentou apagar ressurgem nas vozes dos sobreviventes. Uma dessas vozes, a de Antônio Monteiro, ecoa na lembrança dos corpos de seus familiares boiando no rio próximo à sua casa. Aos 72 anos, ele sobreviveu a uma das maiores chacinas recentes contra indígenas e ribeirinhos no Brasil: o Massacre do Rio Abacaxis, ocorrido em agosto de 2020, no interior do Amazonas.
Em 3 de agosto, teve início uma operação da Polícia Militar na região. Nos dois dias seguintes, policiais invadiram a comunidade e aterrorizaram os moradores. Em 5 de agosto, o filho, a esposa e o neto de 15 anos de Antônio Monteiro foram levados. Os adultos foram torturados por horas e executados, o neto foi assassinado diante da família; e o filho, decapitado. Ao todo, oito pessoas morreram, três desapareceram e centenas de ribeirinhos e indígenas foram torturados.
O massacre teria sido uma suposta vingança após o então secretário executivo do governo do Amazonas, Saulo Rezende Costa, ter sido baleado de raspão depois entrar com uma lancha numa área proibida para pesca esportiva. Em maio deste ano, 13 agentes – incluindo altos nomes da segurança pública do Amazonas – foram indiciados.
Casos como esse, no entanto, raramente ganham espaço na memória coletiva ou nos livros escolares do país. “Esquecemos porque há impunidade, ausência de justiça e um silenciamento sistemático”, afirma Priscila de Oliveira, pesquisadora na ONG Survival International.
Uma história marcada por massacres
Desde a chegada dos colonizadores portugueses, no século 16, indígenas, e mais recentemente ribeirinhos, enfrentam ondas sucessivas de violência. O antropólogo João Pacheco de Oliveira, do Museu Nacional (RJ), explica que a colonização portuguesa legitimou a violência contra os povos indígenas por meio das chamadas “guerras justas”, que, na prática, serviam para garantir acesso à terra e mão de obra, resultando na morte e drástica redução populacional ao longo dos séculos.
Em números, no início da colonização, cerca de 2 a 4 milhões de indígenas viviam no território que hoje é o Brasil. Eles faziam parte de cerca de mil povos distintos. Segundo o Censo de 2022, atualmente, 0,83% da população brasileira é indígena – cerca de 1,69 milhões. Das mil etnias existentes no início da colonização, restam apenas 260.
A violência contra indígenas e ribeirinhos que caracteriza todos esses massacres tem um elemento comum no Brasil, explica Pacheco de Oliveira: “a busca por terras e recursos naturais”. Quanto ao esquecimento, ele existe porque “apaga-se a história para que se apaguem também as responsabilidades”, diz.
A seguir, a DW lista outras chacinas que, assim como o Massacre do Rio Abacaxis, marcaram a história recente dos povos indígenas no Brasil.
O caso Juma
Dos 12 a 15 mil indígenas juma existentes no século 18, hoje restam apenas três mulheres sobreviventes – Boreá, Maytá e Mandeí – vivendo com homens de outras etnias, no rio Xingu. “Quando eu era criança, tenho essas memórias – quando os brancos chegavam, a gente tinha que fugir. Eles vinham para fazer mal”, disse Mandeí, em conversa com a DW.
Até o século 20, o povo juma, originalmente habitante da região do Rio Purus (AM), foi símbolo de resistência à escravidão, à catequese forçada e às expedições punitivas. No entanto, em 1964, durante a ditadura militar, seringalistas invadiram o território da etnia e promoveram um massacre.
Cerca de dez homens entraram na terra indígena para extrair a sorva, um fruto da região, e encontraram a maloca vazia. Quando os Juma retornaram, foram recebidos a tiros. Um dos autores da chacina afirmou ter matado mais de 60 indígenas. Embora não haja um número oficial, poucos sobreviveram. O massacre só passou a ser investigado em 1979. A Polícia Federal abriu um inquérito, mas ninguém foi responsabilizado.
Em 1998, a última família Juma foi levada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para a aldeia Alto Jamary, dos uru-eu-wau-wau. Em 2002, restavam apenas cinco indivíduos; em 2010, apenas quatro. A Terra Indígena Juma, palco do massacre, só foi homologada em 2004. Com a morte de Aruká Juma por covid-19, em 2021, extinguiu-se a linhagem masculina do povo. Embora haja descendentes entre os uru-eu-wau-wau, a cultura juma segue ameaçada pelo desmatamento e pelo esquecimento.
À DW, João Pacheco de Oliveira explica que, durante a ditadura militar (1964–1985), o apagamento histórico de casos de violência contra indígenas, ribeirinhos, além de outros grupos, foi sistemático. A censura à imprensa, à produção cultural e às denúncias internacionais silenciou as violações cometidas na Amazônia.
Os massacres eram classificados como “conflitos fundiários” ou “homicídios isolados”, sem reconhecimento legal como crimes contra a humanidade. “Mesmo com os avanços da Comissão da Verdade, o que se conhece hoje é apenas uma fração do que de fato ocorreu. A ausência de justiça fortalece o esquecimento”, diz o antropólogo.
Com uma voz serena, Mandeí relata à DW a tristeza que é ver o “fim do seu povo”. Mas diz que nem tudo se perdeu – é otimista e afirma que, embora não saiba escrever, tem um sonho: “Quero contar ao mundo a história do meu povo, os jumas. Um dia eu vou fazer isso”.
Massacre do Capacete: genocídio reconhecido
Outro massacre histórico ocorreu em 1988, na comunidade de Capacete, próxima a Benjamin Constant (AM). Cerca de 14 homens armados invadiram uma assembleia pacífica do povo ticuna, que discutia a demarcação de suas terras. O ataque deixou 14 mortos, incluindo cinco crianças, e 23 feridos.
Pacheco de Oliveira, que atuava na região, elaborou um relatório à época. “Foi uma vingança ligada a interesses madeireiros e fundiários. A área seria demarcada, e havia muito dinheiro envolvido”, lembra.
O caso ganhou repercussão internacional. Até 1994, o crime foi tratado como homicídio, mas um recurso do Ministério Público Federal conseguiu alterar para um julgamento de genocídio. Houve condenações relacionadas ao massacre dos Ticuna, mas as penas foram alteradas, ou reduzidas.
Com uma população de quase 60 mil pessoas, os ticuna são hoje o povo indígena mais numeroso da Amazônia brasileira.
Massacre de Haximu
Em 1993, o povo yanomami foi mais uma etnia alvo de massacres. Essa chacina foi a primeira da história brasileira a ser julgada como genocídio (diferentemente do caso dos ticuna, cujo crime de genocídio foi incluído no processo anos depois).
O ataque se deu quando garimpeiros armados invadiram a comunidade Haximu, em Roraima, na fronteira com a Venezuela, e mataram ao menos 16 pessoas – entre elas, crianças e idosos. A invasão fazia parte da corrida do ouro nos anos 1980, quando mais de 40 mil garimpeiros ocuparam a região.
Os autos judiciais e documentos da época incluem o relato do antropólogo francês Bruce Albert. Ele contou que as vítimas eram, em sua maioria, mulheres, crianças e idosos, já que os homens haviam partido para participar de uma festa em uma comunidade vizinha.
A demarcação a Terra Indígena Yanomami tinha ocorrido um ano antes do massacre que gerou forte comoção internacional. Nos anos seguintes, os ataques não cessaram. Até hoje, o território desse povo sofre com garimpo ilegal, contaminação por mercúrio e violência armada.
Massacre de Caarapó
Nas últimas décadas, os guarani kaiowá também têm sido alvo de violência nas áreas de expansão agropecuária no Oeste brasileiro, vítimas de ataques e expulsão sistemática de seus territórios. Um exemplo foi o assassinato, em 2003, do seu líder Marcos Veron por pistoleiros durante uma retomada de terras em Mato Grosso do Sul (MS).
Treze anos depois, em 2016, outro episódio marcou a trajetória deste grupo. Alvo de uma disputa territorial, a fazenda Yvu, em Caarapó (MS), foi ocupada por um grupo de indígenas. A região fazia parte da área estudada pela Funai para compor a Terra Indígena Dourados Amambaipeguá I, que estava em processo de demarcação. Os guarani kaiowá teriam sido expulsos da região há décadas pelo governo para a criação de fazendas.
Dois dias depois, em 14 de junho de 2016, fazendeiros tentaram expulsar o grupo do local, onde chegaram atirando. O caso ficou conhecido como Massacre de Caarapó e resultou na morte de um indígena e deixou seis feridos, incluindo uma criança de 12 anos.
Em 2023, no Mato Grosso do Sul, cinco fazendeiros foram denunciados pelo Ministério Público Federal pelo ataque na fazenda Yvu. Os réus responderam por homicídio qualificado, tentativa de homicídio qualificado, formação de milícia armada, dano qualificado e constrangimento ilegal. Após idas e vindas da justiça, alguns foram presos e outros foram condenados a penas alternativas.