11/10/2022 - 12:02
Ele lembra de uma noite sem luar, céu nublado e chuvoso. Havia gritos. Uma mulher chorava. A seus pés, um garoto sem um pedaço do rosto se esvaía em sangue. “Não tive coragem de me aproximar dele, de reconfortá-lo, tive medo. Sentia muito medo”.
Assim, Roy Harley relata a primeira noite que passou na cordilheira dos Andes há 50 anos, quando ocorreu o acidente de avião que se tornaria uma das histórias de sobrevivência mais extraordinárias da humanidade.
O voo 571 da Força Aérea Uruguaia partiu de Montevidéu dois dias antes com 45 pessoas a bordo: uma equipe amadora de rugby formada por jovens ex-estudantes de um colégio católico, alguns familiares e a tripulação. Viajavam para uma partida em Santiago, no Chile, mas uma tempestade os obrigou a fazer uma escala em Mendoça, Argentina, onde passaram a noite.
No dia seguinte, em 13 de outubro de 1972, ainda com as condições climáticas instáveis, decolaram. Minutos depois, o avião caiu sobre as montanhas de gelo, a 4.000 metros de altitude.
“Para os que acreditam em inferno, eu o vivi nesta noite”, disse Harley, de 70 anos, sentado junto a Carlos Páez, de 68.
Eles estavam entre os 16 que conseguiram sair com vida da cordilheira após permanecerem 72 dias na fuselagem do avião, com temperaturas 30 graus abaixo de zero, e de tomar a difícil decisão de ingerir a carne de seus colegas mortos para sobreviver.
A história, conhecida como Tragédia ou Milagre dos Andes já inspirou dezenas de documentários, filmes e livros e é considerada por seus protagonistas como algo que os transformou de maneira positiva.
“Com o tempo deixei de ver o acidente como um drama (…) porque, afinal, o que venceu foi a vida”, disse Páez em sua casa em La Tahona, bairro da periferia de Montevidéu.
Harley concorda: “Não é uma história trágica. Vejo o inverso: somos sortudos. É uma história maravilhosa, espetacular. Uma história que ainda é atual, 50 anos depois”.
– Corpo e alma –
Amigos desde a infância, as memórias daqueles dias continuam fortes, apesar das cinco décadas que se passaram. Mas eles não têm mais pesadelos ou sensações negativas nem mesmo com o elemento que gerou mais curiosidade e controvérsia: a antropofagia.
“Eu pergunto em todas as conferências: ‘Algum de vocês não o faria?’ E ninguém levanta a mão”, disse Páez sobre a decisão de se alimentar com os corpos dos mortos.
“Para nós, cristãos, é mais fácil porque sabemos que o corpo vai para um lado e a alma para outro. De alguma forma buscamos essa explicação, mas o mais importante foi o direito à vida e de voltar para casa”.
Harley saiu da montanha pesando 37 quilos com 1,80 de altura. Ele explica que simplesmente não havia outra opção.
“Uma coisa que tínhamos certeza era de que não queríamos morrer na Cordilheira. Preferíamos comer solas, cigarros, pasta de dentes… Não havia alternativa”, afirma, acrescentando que não foi uma decisão que o angustie.
“Não tenho lembranças horríveis ou que me atormentem, me tiram o sono. Fizemos o que pudemos para sobreviver”.
– Lutar até o fim –
Dez dias depois do fatídico 13, através de um rádio que ainda funcionava, os sobreviventes souberam que as buscas pelo avião haviam sido suspensas e eles, considerados mortos.
Foi quando decidiram que deveriam “deixar de esperar para começar a agir”. A única saída era escalar as montanhas e buscar ajuda.
Após semanas de preparação, o plano impossível foi colocado em prática em 12 de dezembro quando Fernando Parrado e Roberto Canessa, iniciaram nove dias de caminhada até esbarrarem com o tropeiro Sergio Catalán na remota localidade chilena de Los Maitenes.
“Fizemos as coisas acontecerem. Fomos buscar os helicópteros”, disse Páez, destacando que a altitude e o trabalho em equipe lhes salvaram.
“Escolhemos lutar, lutar, lutar até o fim”, afirma Roy.
Dos 16 sobreviventes, alguns decidiram se afastar dos olhos do público, sob o qual ficaram desde 22 de dezembro de 1972, quando seu resgate comoveu o mundo. Outros optaram vestir a camisa de sua história e transmitir suas lições em palestras por todo o mundo.
Entre eles, Páez e Harley, que viajam constantemente levando sua mensagem de resiliência.
“Os problemas nos tornam diferentes”, garante Harley, embora admita que às vezes volta a se preocupar com ninharias. “Às vezes me queixo e penso ‘não pode ser que depois de tudo que passei vou me preocupar com esta estupidez'”.
“O ser humano tem uma grande capacidade de esquecimento da dor”, reflete Páez.
Ele exemplifica com algo cotidiano: “Passamos tanto frio, passamos tão mal que não tenho palavras para descrever”. No entanto, “volto a me queixar de frio, como um ser humano comum”.