Condenação do ex-presidente é uma lavada de alma para parentes e amigos de quase 700 mil pessoas que morreram de covid e também para todos nós que, de formas variadas, passamos por esse trauma coletivo.”Fiquei 22 dias em coma. Vi Paulo Gustavo morrer e o desgraçado me imitando com falta de ar! Eu vi isso… estava no pior dia da minha vida! Estava no pico alto da covid! Peguei porque saí para trabalhar para que minha família não ficasse na fila do osso.” Esse desabafo foi feito pela profissional de marketing Swelen Santos no X, o antigo Twitter, no dia 11 de setembro, logo depois de o ex-presidente Jair Bolsonaro ser condenado a 27 anos de prisão por tentativa de golpe de Estado.

Ela não foi a única. Alguns momentos depois da divulgação da sentença, em meio a comemorações e lamentos de bolsonaristas, a dor das vítimas da pandemia começou a aparecer nas redes sociais em forma de gritos de revolta, de justiça e algum alívio.

Um vídeo onde uma mulher grita da janela: “pai, não foi mimimi! Nós conseguimos, pai. Não era uma gripezinha. Nós vencemos. É para você, pai”, viralizou. A imagem é de 2022, gravada depois de Bolsonaro perder as eleições, mas muitos se sentiram representados pela homenagem da moça novamente. O vídeo foi seguido por centenas de declarações parecidas, feitas por pessoas que perderam familiares e amigos durante a pandemia e também se sentiam, de certa forma, vingadas.

“Minha avó morreu por causa da covid. Ela poderia perfeitamente estar conosco. Suas irmãs mais velhas estão todas vivas. É por você, vó”, escreveu um jovem médico. Alguns contavam que perderam vários familiares ao mesmo tempo.

Lendo esses depoimentos, é difícil não se emocionar com tanta dor. E também não sentir raiva ao lembrar do descaso, do negacionismo, do atraso na compra de vacinas. Mas o que revolta mesmo é lembrar e rever momentos em que Jair Bolsonaro imitou pessoas com falta de ar (em março e maio de 2021, nos piores momentos da pandemia), respondeu para um repórter a uma pergunta sobre mortes na pandemia com a frase: “Não sou coveiro, tá”. E disse: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar contando até quando? “, enquanto o Brasil enterrava milhares de pessoas por dia.

É estarrecedor que tenha existido um governante com tanta falta de empatia como Bolsonaro durante a pandemia. É repugnante. Tive amigos que morreram do vírus no Brasil na época, mas não consigo imaginar a dor e a revolta de quem perdeu parentes próximos e como resposta teve o governante do seu país gritando na sua cara “não sou coveiro!”. Essas pessoas merecem alguma justiça.

Julgamento da pandemia

O ex-presidente ainda não pagou pelos seus crimes durante o período. Segundo relatório apresentado pela CPI da Covid, realizada no fim de 2021, o ex-presidente cometeu nove crimes durante a pandemia. Entre eles, estão charlatanismo, crime de responsabilidade e incitação ao crime. Ele não chegou nem a ser julgado. Espero, sem muita esperança, que um dia ele pague por isso também.

Mas ele ser condenado a 27 anos de prisão já é uma lavada de alma para parentes e amigos das quase 700 mil pessoas que morreram de covid no seu governo, e também para todos nós que, de formas variadas, também passamos por esse trauma coletivo.

É tão horrível lembrar do período que às vezes dá vontade de simplesmente esquecer. Mas, como sempre se diz: “é preciso lembrar para que não se repita”. E as vítimas da covid e da falta de empatia máxima não podem jamais serem esquecidas.

Bolsonaro foi condenado pelo STF por 4 votos contra 1. Mesmo assim, ainda é preciso que haja pressão para que ele cumpra a pena e pague pelos seus crimes. Depois disso, quem sabe um dia, poderemos torcer para que ele pague pelo que fez (e o que não fez) com as vítimas da pandemia e seus familiares. É pela democracia. Mas é por eles também.

_____________________________

Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.