Ex-presidente e apoiadores querem fazer os brasileiros e o resto do mundo acreditarem que eles não são autores de uma tentativa de golpe, e sim vítimas de um suposto juiz ditatorial no STF.Faz parte das estratégias centrais dos novos movimentos de direita, que ao redor do mundo ameaçam a democracia, apresentar a si e seus líderes como vítimas. Donald Trump foi o precursor. O bilionário, que ao longo da vida violou repetidas vezes e de forma comprovada as leis, afirma estar sendo perseguido por um sistema judiciário injusto e politizado. Agora, porém, ele estaria se defendendo. Essa é sua justificativa para os ataques a figuras e estruturas centrais da democracia, que se baseia na divisão do poder e das decisões. Quando essa divisão deixa de existir, também deixa de existir a democracia.

O ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro e seu clã – admiradores de longa data e alunos aplicados do atual presidente dos EUA – tentam copiar essa estratégia de inversão entre agressor e vítima. Querem fazer os brasileiros e o resto do mundo acreditarem que não são eles os autores de uma tentativa de golpe de Estado, mas sim as vítimas de um suposto juiz ditatorial no STF. Já não resta dúvida de que o golpe de Bolsonaro só fracassou devido à resistência de alguns generais que não quiseram embarcar na aventura do capitão.

Diante desse fato, o clã Bolsonaro passou a investir em outra frente de combate: manter sua base mobilizada por meio de confusões calculadas, distrações constantes e imagens nas redes sociais que retratem Bolsonaro como a verdadeira vítima. Era exatamente esse o objetivo quando Bolsonaro, com a ajuda de seus filhos, violou deliberadamente a ordem judicial clara do ministro Alexandre de Moraes de se abster do uso das redes sociais, provocando assim a imposição da prisão domiciliar. Seria ingênuo acreditar que os advogados de Bolsonaro não o alertaram sobre essa consequência.

No círculo de Bolsonaro sabe-se muito bem que a tentativa de golpe permanece abstrata no imaginário da maioria dos brasileiros e, portanto, também facilmente negável. Já as imagens de um ex-presidente com tornozeleira eletrônica e em prisão domiciliar são concretas e permanecem na memória. Nas redes do bolsonarismo (e do trumpismo), hermeticamente fechadas à realidade e a qualquer forma de complexidade, essas imagens têm o efeito desejado: Jair, o salvador do Brasil, está sendo perseguido pelo poder.

Essa narrativa não se destina apenas ao público brasileiro, mas também a Donald Trump e seus capangas, como o secretário de Estado americano Marco Rubio. A tentativa de Trump de exercer pressão sobre o governo Lula por meio da ameaça das tarifas de importação mais altas do mundo não foi bem recebida no Brasil. A sociedade brasileira pode estar politicamente extremamente polarizada – mas a maioria dos brasileiros rejeita tentativas de ingerência externa nos assuntos internos do país; e compreende (espera-se!) o que significa separação de poderes.

Foi um erro de cálculo do clã Bolsonaro imaginar que, com ameaças totalmente desproporcionais, seria possível exercer tamanha pressão a ponto de fazer com que a denúncia contra Bolsonaro fosse arquivada ou que Lula concedesse anistia aos golpistas. No círculo de Bolsonaro isso parece já ter sido compreendido. Agora, trata-se de continuar alimentando a espiral de escalada e manter Trump engajado. O presidente americano deve continuar acreditando que há uma “caça às bruxas” contra Bolsonaro – assim como teria havido contra ele, o grande Donald.

Protagonismo de Moraes acaba servindo aos bolsonaristas

É absolutamente legítimo criticar que o Supremo Tribunal Federal do Brasil seja sobrecarregado com decisões que pertencem ao campo da política. Também é válida a crítica às decisões monocráticas e ao excesso de poder que é atribuído a juízes individuais em casos específicos. O resultado são decisões muitas vezes tidas como impulsivas e excessivas, que colocam os juízes sob fogo cruzado. Cria-se a impressão de que há duelos pessoais entre juiz e acusado. Foi assim no caso Moro vs. Lula; e agora se repete no caso Moraes vs. Bolsonaro.

Por maiores que sejam os méritos de Moraes em defesa da democracia e do Estado de Direito, por não se deixar intimidar por aspirantes a ditador, seu protagonismo involuntário acaba servindo aos bolsonaristas. Pois, naturalmente, apresentam a situação como se Moraes estivesse em uma cruzada pessoal contra Bolsonaro e seus seguidores – quando, na verdade, trata-se de um processo judicial contra criminosos.

Seria bom que o caso Bolsonaro chegasse logo ao fim e que o ex-presidente fosse condenado a uma pena de prisão justamente merecida (que, como de costume no Brasil, ele de todo modo não cumpriria integralmente). Também seria desejável que os conservadores brasileiros se libertassem do feitiço maligno de Bolsonaro e de seu clã. Há tempo demais o país não se ocupa com a modernização necessária em quase todas as áreas (que também não está sendo promovida pelo governo Lula), mas sim com os assuntos familiares e as fantasias de onipotência desse senhor paranoico e medíocre.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha, Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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