Quando a execução pública substitui a política: o espetáculo que impede a solução real.Ocasionalmente, a sociedade brasileira quer ver sangue. Quer se vingar por viver em permanente insegurança; se vingar de todos os assaltos, furtos e homicídios que, diariamente, lançam milhares de pessoas no medo e no desespero. Quer compensar sua impotência.

O sangue nas ruas, os corpos mortos de jovens, na maioria negros, provocam uma satisfação arcaica e uma aprovação generalizada.

A operação policial nos complexos do Alemão e da Penha foi uma espécie de sangria pública. A maioria dos brasileiros – inclusive muitos moradores das favelas – aprova a ação, apesar de sua dimensão horrenda. Os mortos, segundo essa lógica, apenas encontraram o destino que escolheram. Ninguém os obrigou a portar armas, a se tornarem criminosos ou a manterem os moradores das favelas em brutal cativeiro. O massacre da semana passada foi o Circus Maximus Brasiliensis – a versão brasileira do anfiteatro romano.

As perguntas sobre a legalidade, o respeito aos direitos humanos e a eficácia dessas ações se tornam, assim, secundárias. As operações cumprem um propósito simbólico: esfriar o ânimo fervente do povo. Servem também aos políticos que as ordenam, para poderem se apresentar como firmes e resolutos.

A cada dois ou três anos ocorrem essas operações (quase sempre no Rio de Janeiro), e a cada vez o número de mortos aumenta. Depois – como já se comentou aqui – tudo volta a ser como antes, porque o Estado não dá o passo seguinte, o decisivo: ocupar e desenvolver de forma permanente os territórios dominados pelo crime organizado.

A grande questão é: por que o Estado não tem interesse nesses territórios? Seria porque seria preciso um contingente policial enorme para garanti-los de modo duradouro? Custaria demais desenvolver esses bairros pobres social e infraestruturalmente? Ou prefere a política deixar tudo como está, para ter sempre um bode expiatório a ser sacrificado em operações policiais espetaculares?

Falsa polêmica populista

Pode até ser que o Estado tenha vencido, na semana passada, uma batalha contra o Comando Vermelho, mas ele perde a guerra se não retirar do CV o solo em que atua. Nesse sentido, o debate sobre classificar o grupo como organização terrorista é uma falsa polêmica populista de políticos ultradireitistas. O objetivo não é combater o CV de modo eficaz, mas sim encenar dureza e determinação.

Está claro que nem o Comando Vermelho, nem o PCC, muito mais organizado e poderoso, perseguem objetivos políticos por meio de atos terroristas. São máfias diversificadas e orientadas pelo lucro, que controlam à força territórios marcados pela ausência do Estado. A força deles se evidencia na expansão por todo o país e na infiltração em vários setores da economia – do garimpo ilegal na Amazônia ao mercado imobiliário nas cidades.

Reclassificar o CV e o PCC como grupos terroristas teria como consequência tornar as operações policiais nas favelas ainda mais sangrentas, sob o rótulo de “combate ao terrorismo”, e aumentaria a violência de modo geral. Haveria o risco de uma “colombianização” do Brasil. A lógica militar avançaria ainda mais sobre as soluções sociais.

Mas organizações mafiosas não se derrotam por meios militares, porque penetram a sociedade e o próprio Estado. O exemplo do México mostra onde isso pode levar: quando, em 2006, o Exército foi enviado para combater os cartéis, começou um dos capítulos mais brutais da história do país, com centenas de milhares de mortos e desaparecidos. O resultado: os cartéis, reagrupados, continuam tão fortes quanto antes e dominam cidades inteiras.

Um argumento que talvez convença até cabeças-quentes de direita, como o deputado Nikolas Ferreira, que impulsiona a proposta de classificação do CV como grupo terrorista: se o Brasil anunciasse que há organizações terroristas atuando em seu território, investidores estrangeiros pensariam três vezes antes de aplicar seu dinheiro aqui – os custos de seguro disparariam.

Combate com inteligência

Se o objetivo fosse realmente combater o crime organizado de forma eficaz e duradoura, isso deveria ser feito com bisturi, não com punhal – com inteligência, não com brutalidade e estupidez.

Seria preciso seguir o dinheiro da máfia e usar novas tecnologias. A inteligência artificial, por exemplo, pode detectar transações suspeitas com precisão e rapidez, pois é capaz de processar volumes de dados que nenhum delegado conseguiria. Já a tecnologia blockchain permite rastrear as operações financeiras e documentar os fluxos de dinheiro de forma transparente.

Igualmente essencial seria melhorar a cooperação internacional entre instituições financeiras e autoridades para desmantelar redes mafiosas transnacionais.

Tudo isso ocorreria de maneira discreta e silenciosa. E atingiria o crime organizado em seu ponto mais sensível: o dinheiro. Enquanto, porém, a política brasileira preferir ver sangue nas ruas, nada mudará.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha, Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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