20/11/2025 - 7:34
Em uma sociedade moldada pelo racismo, como é o caso do Brasil, a ideia de consciência humana não passa de uma farsa útil para livrar muitos da responsabilidade por sustentarem as engrenagens do racismo.12 de novembro de 2025. Policiais militares entram armados na Escola Municipal Antônio Bento, localizada no Butantã, zona oeste de São Paulo. Desavisados poderiam imaginar que a ação desmedida (armas numa escola são coisas que não combinam em lugar algum) tivesse como objetivo interceptar a venda de drogas, ou então era o fechamento de uma investigação que desmantelava uma quadrilha que aliciava crianças e jovens. Mas não… o motivo era muito mais grave.
Como parte das atividades propostas para o grupo de ensino infantil, uma das crianças fez um desenho de Iansã – a orixá dos ventos e tempestades – no mural da escola. Ao saber que o desenho integrava um conjunto de atividades pedagógicas sobre religiões de matriz africana, o pai da criança procurou a polícia. Isso mesmo.
Alegando que religiões de matriz africana não deveriam fazer parte das atividades escolares, o pai deu queixa na polícia que achou que havia motivos suficientes para mandar quatro policiais até a escola – segundo testemunhas, um deles estaria portando uma metralhadora – para questionar a direção sobre o verdadeiro teor da atividade.
É difícil dissecar as muitas camadas de absurdo desse caso. Um pai que não entende a importância de sua filha – matriculada numa escola pública e laica – conhecer a diversidade com a qual a humanidade estabeleceu sua relação com o divino. Um pai que deve ignorar como o culto aos orixás foi fundamental para a construção e a resistência do maior percentual da população brasileira. No entanto, esse pai ocupa um lugar pequeno nessa escalada de absurdos.
Quatro policiais decidiram que a queixa tinha relevância. Nem um, nem dois: quatro. Quatro servidores públicos que ignoram ou simplesmente desconsideram por completo a existência de uma lei, promulgada em 2003 e ampliada em 2008, que OBRIGA que as escolas brasileiras (públicas e privadas) ensinem história e cultura africanas, afrobrasileiras e indígenas. No linguajar militar: a escola estava apenas cumprindo seu dever.
Nem isso esses policiais conseguiram enxergar, porque, para muitos brasileiros, é simplesmente insuportável conviver com qualquer manifestação que celebre as religiões afrobrasileiras ou afirme positivamente a presença negra na história e na cultura do país.
Mimimi de quem propaga a supremacia branca
Os mesmos brasileiros que quando chega todo 20 de novembro , vem com aquele lenga-lenga racista de que não deveria existir consciência negra; que o que importa é a consciência humana… O verdadeiro mimimi típico de quem acredita e propaga a supremacia branca no país. Então, aproveito para dar um recado para esses brasileiros – muitos dos quais são “leitores” e comentadores “assíduos” da minha coluna: em uma sociedade moldada pelo racismo, como é o caso do Brasil, a ideia de consciência humana não passa de uma farsa útil: um discurso que serve apenas para livrar muitos da responsabilidade por sustentarem, dia após dia, as engrenagens do racismo que fingem não ver.
Então, e talvez mais do que nunca, seja fundamental celebrar o 20 de novembro, a Consciência Negra e a figura de Zumbi dos Palmares . Sobretudo esse 20 de novembro de 2025, no qual comemoramos os 30 anos desta data oficial para se pensar a existência negra brasileira.
Durante muito tempo, o 13 de maio – data da assinatura da Lei Áurea em 1888 – era lembrado como o marco da libertação dos negros no Brasil. Uma lembrança cujo epicentro era a figura da princesa Isabel, a redentora, que embora tenha sido uma figura importante na abolição, está longe de resumir a intrincada e complexa luta do abolicionismo brasileiro.
Justamente por isso, e por conhecer outras figuras e outras histórias, muitos movimentos negros passaram a contestar essa celebração, e também por entenderem que ela não representava a verdadeira luta do povo negro, que continuou marginalizado mesmo após a abolição. Foi nesse contexto que, ao longo dos anos 1970 e 1980, cresceu a articulação de grupos que buscavam reconhecer o 20 de novembro como um dia de resistência e afirmação da identidade negra.
A escolha da data remete à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial, o Quilombo dos Palmares, localizado na região da atual Alagoas. Recusando-se a ceder às pressões do rei português e às tropas coloniais, Zumbi foi assassinado em 20 de novembro de 1695, tornando-se símbolo da resistência negra à escravidão e à opressão.
O reconhecimento nacional da data ganhou grande impulso com a Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em 20 de novembro de 1995, em Brasília. A marcha reuniu cerca de 30 mil pessoas e marcou os 300 anos da morte de Zumbi. Organizada por diversas entidades do movimento negro, a mobilização pressionava o Estado brasileiro por políticas públicas de combate ao racismo, igualdade de oportunidades e valorização da cultura afrobrasileira.
Esse ato histórico consolidou o 20 de novembro como uma data de luta e memória, e foi um marco na institucionalização das pautas do movimento negro no país. Depois da consolidação dessa data pelos movimentos negros, outras conquistas importantes foram feitas, dentre elas a promulgação da já citada Lei 10.639/2003 e das cotas raciais para as universidades públicas. Exemplos de que é o Brasil todo que ganha com o Dia da Consciência Negra .
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
