02/09/2025 - 6:02
Foi preciso haver um escândalo nacional e a votação de um projeto de lei para que o YouTube deletasse canais que expunham crianças. Entendem por que as redes precisam de regulamentação?Em seu perfil no Instagram, que tem quase 3 milhões de seguidores, o youtuber Taspio (Felipe Sápio) publica imagens de carros de luxo e um estilo de vida de ostentação. Ali, ele partilha também um pouco do seu trabalho. Um deles é produzir reality shows com crianças no YouTube. Basicamente, ele lucra expondo menores. No YouTube, perfis de fãs que exibem o conteúdo do canal mostram crianças fazendo danças sensuais, curtindo festas e muitas meninas usando roupas de adultas. É de enjoar.
Talvez você, como eu, nunca tivesse ouvido falar antes desse youtuber. Mas o canal de Taspio somava 12 milhões de seguidores nas redes sociais. Só no YouTube, ele tinha 7 milhões de seguidores. Junto com outros canais, como “Bel para Meninas”, “Paty e Dedé” e “João Caetano”, ele foi retirado da plataforma no fim de agosto.
Sim, o YouTube finalmente deletou alguns canais que geravam lucro absurdo para seus criadores e para a plataforma expondo e ridicularizado menores de idade. Mas isso só aconteceu depois de um escândalo nacional e da votação de uma lei.
Eca Digital
Falo, claro, do “efeito Felca”: a justa indignação que tomou conta do país depois que um vídeo do youtuber Felca denunciando a “adultização” de crianças na internet, o quanto isso era lucrativo e, ainda, o quanto esses vídeos atraíam pedófilos, viralizou. O vídeo gerou manifestações de horror de políticos de todos os campos e impulsionou a aprovação, na semana passada, do Projeto de Lei 2.628/2022, que visa proteger as crianças e os adolescentes em ambientes digitais.
Chamado de “Estatuto Digital da Criança e do Adolescente”, ou, “Eca Digital” , o projeto ainda precisa ser sancionado pelo presidente Lula, o que deve acontecer em breve. Ele prevê, entre outras coisas, que as plataformas sejam obrigadas a retirar imediatamente conteúdos que violem os direitos de crianças e adolescentes e o pagamento de multas milionárias caso isso não seja feito.
Mas o “Eca Digital” nem precisou ser sancionado para que canais como o de Taspio fossem deletados. Em reportagem publicada no Estado de S. Paulo, o YouTube confirmou as remoções e afirmou que “conteúdo que visa menores de idade e famílias, mas que contém temas sexuais ou violência, ou que de outra forma coloca em risco o bem-estar emocional e físico de menores, não é permitido” e é retirado da plataforma “assim que é identificado”.
Que bom que esses canais finalmente foram deletados. Mas, vamos combinar, eles existiam há anos, a ponto de somarem esses números inacreditáveis. Eles não estavam “escondidos”. A remoção só prova que as chamadas “big techs” só agem para apagar conteúdos danosos e que violam leis (esse tipo de exposição já era proibida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente) diante de muita pressão.
Foi preciso que um escândalo nacional fosse criado e que um projeto de lei fosse votado para que canais que expunham crianças fossem deletados do YouTube. Sem isso, nada seria feito. Entendem por que as redes precisam de regulamentação?
Isso prova que aquela velha conversa das big techs e de seus defensores de que as redes, de certa forma, se “autorregulam” não funciona. Se isso desse certo, esses canais já teriam sido deletados há anos, ou, na verdade, nunca existiriam.
E não venham dizer que trata-se de liberdade de expressão. Estamos falando de vídeos que expunham crianças a situações vexatórias e atraíam pedófilos. Esse tipo de conteúdo não é só repulsivo moralmente, mas é, repito, contra a lei.
Em seus canais, os youtubers reclamaram do apagamento de seus canais falando que estavam sendo “perseguidos” e que não fizeram nada de errado. Já conhecemos esse mimimi. Ele, junto com a defesa da tal liberdade de expressão, é usado por todos que lucram infringindo leis nas redes sociais. Vale explicar: se alguém for pego vendendo fotos de crianças sensualizando, essa pessoa vai ser presa porque isso é contra a lei. Essa prática seria mais explícita, mas não tão diferente de lucrar com conteúdo que atrai pedófilos na internet.
Tomara que esse escândalo e a aprovação da “Lei Felca” sirvam para finalmente impulsionar os projetos que regularizam as redes no Brasil. Não vai ser fácil, já que esse é um assunto que mobiliza até o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Para aqueles que temem que uma lei que regularize as redes no Brasil cause problemas ou seja “a volta da censura”, relembro: na União Europeia as redes já são regulamentadas desde 2022. Apesar de ser parte da UE, a Alemanha ainda tem uma outra lei, a Jugendschutzgesetz (JuSchG), atualizada em 2021, que faz com que as plataformas sejam obrigadas a apagar conteúdos ofensivos e contra a lei, sob o risco de pagarem multas milionárias.
Regular as redes não é, portanto, nenhuma novidade. Tomara que a proteção às crianças, que causou tanta indignação, deixe claro para todos que as redes precisam ser regulamentadas também no Brasil. E que isso é urgente.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.