É bom que o país finalmente esteja debatendo o combate à adultização nas redes. Mas é importante lembrar que muitas crianças pobres são “adultizadas” longe das câmeras desde sempre e sem causar a mesma indignação.Quando somos crianças brincamos de sonhar em ser coisas que, muitas vezes, não vão virar realidade.

Até os anos 2000, toda criança queria virar “modelo” ou jogador de futebol. Normal, afinal, tínhamos uma Gisele Bündchen e um Ronaldinho para admirar.

Hoje, as crianças sonham em ser youtuber ou “tiktoker”. E eu não vejo nada de errado nisso. O sonho é livre. Já a realidade, bem, ela é outra coisa.

Crianças podem querer muitas coisas, mas, em um mundo civilizado, existem pais, professores e a sociedade (e mesmo leis) que aplicam nas crianças o que Freud chama de “princípio de realidade”, a boa e velha noção básica sobre o mundo real.

Adultização

Estou falando, claro, da “adultização”, um fenômeno que não é novidade, mas que ganhou um merecidíssimo destaque no Brasil inteiro depois que o youtuber Felca fez um vídeo denunciando o fenômeno e pedófilos que fazem uso desse tipo de “conteúdo”.

O vídeo causou um justo choque no país inteiro e, no momento, políticos de todos os espectros políticos pensam em como combater o problema. É muito bom que esse debate aconteça. E tomara que a gente não esqueça dele quando o próximo vídeo de sucesso aparecer.

No vídeo, entre outras coisas, é mostrado como meninas são adultizadas e sexualizadas na internet ainda crianças. Um fenômeno horrível.

Lembro de ficar chocada em 2020 quando conheci o conteúdo do canal Bel para Meninas, que gerou indignação nas redes sociais. Um vídeo que me marcou tinha o título “Bel levada pela correnteza” (e só essa frase ligada a uma criança já é uma violência horrível), que mostrava literalmente a menina boiando em um rio com correnteza forte, assustada. Em muitos vídeos, sua mãe parecia a humilhar.

O exemplo mais assustador é o de Hytalo Santos, que foi preso por suspeita de tráfico humano e exploração infantil depois que o vídeo de Felca viralizou. O sujeito simplesmente fazia uma espécie de reality show em sua casa, onde crianças e adolescentes eram exibidas em vídeos com conotação sexual. Um absurdo.

O falso “consentimento”

Os que defendem esse tipo de conteúdo (e em geral são os que os produzem) costumam dizer: “mas ela(e) quis!”.

Bem, vou dar um exemplo real da minha vida: quando eu tinha cinco anos, sonhava em ser “bailarina de circo”, o que sempre fez meus pais se divertirem com a “gracinha”.

Obviamente, isso era uma fantasia infantil e cá estou eu, jornalista. Agora, imaginem a seguinte situação: um circo passa na frente da minha casa e pergunta se eu quero ir junto e virar bailarina. Eu digo que sim. E meus pais acham uma boa ideia, eu sigo com o circo sendo uma criança e meus pais ficam com o meu cachê?

Louco, né? Mas não é muito diferente do caso das meninas que são expostas na internet (não só psicologicamente, mas também para pedófilos.

Solução

Como resolver esse problema? Não acho que uma proibição pura e simples de acesso das crianças ao celular seria a solução. Em tempos de mídias sociais e em um país tão desigual como o Brasil, o fenômeno é mais complexo. Quem precisa ser punido e se responsabilizar por essa tragédia é, principalmente, quem lucra com elas.

Esse grupo inclui desde pessoas sem caráter como o “influenciador” Hytalo Santos até pais que expõem as crianças. E, obviamente, não podemos esquecer dos magnatas das big techs, que precisam assumir as suas responsabilidades e parar de lucrar com exploração infantil e pedofilia.

Sim, é disso que se trata. As redes precisam, sim, ser reguladas, e isso não tem nada a ver com liberdade de expressão. Na Alemanha, por exemplo, a internet já é regulada desde 2018.

No caso dos responsáveis que lucram com a exploração das crianças, o assunto é cheio de camadas. Há tipos diferentes de pais que “exploram” os filhos na internet. Existem aqueles que o fazem para conseguir prover o básico para suas casas e que agem por ingenuidade.

Mas também não podemos esquecer que muitos influencers milionários e famosos também usam a imagem dos seus filhos de forma exagerada. Não vamos ser ingênuos, crianças na internet geram engajamento e, consequentemente, dinheiro.

E as crianças que moram nas ruas?

É excelente que o país inteiro finalmente esteja falando sobre esse assunto. Mas é importante lembrar também que muitas crianças pobres e miseráveis são “adultizadas” no Brasil desde sempre e que isso ainda é banalizado e não costuma causar revolta nacional.

Falo das meninas que precisam se prostituir, das empregadas domésticas que começam a trabalhar ainda menores de idade em casas de patroas e por aí vai. Também não podemos nos esquecer dos milhares de crianças que vivem nas ruas. É hora de parar com a “cegueira seletiva”. E sim, esse é um debate longo, mas extremamente necessário.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.