15/10/2025 - 6:20
Um pequeno povo indígena de Rondônia comprova que o Brasil é capaz de conciliar economia e ecologia.Os povos indígenas de Rondônia chamam a BR-364 de “cobra”. Ela corta o estado de norte a sul e, por onde se arrasta, deixa um rastro de desmatamento e vazio. À direita e à esquerda do asfalto, repete-se a mesma paisagem: pastos imensos, grandes demais para as poucas cabeças de gado que os ocupam. Em trechos longos, não há gado algum; a terra nua parece existir apenas como mercadoria para a especulação.
As cidades ao longo da estrada são aglomerados empoeirados e sem rosto, tão típicos do interior brasileiro. À desolação da paisagem soma-se uma certa aridez cultural. Nas entradas dessas cidades, há lojas gigantes da Havan – com suas absurdas réplicas da Estátua da Liberdade – e galpões de empresas do agronegócio, que vendem tratores, fertilizantes, pesticidas e ração animal. Os carros que circulam ali revelam que dinheiro não falta: Hilux, Ranger, L200.
Rondônia é hoje o terceiro estado mais desmatado do país, atrás apenas do Pará e do Mato Grosso. As Terras Indígenas são as únicas regiões onde ainda restam grandes manchas de floresta. São elas também que mantêm Rondônia com água: é nelas que nascem os rios que abastecem o estado.
Passei alguns dias na Terra Indígena Sete de Setembro, cuja metade do território fica no Mato Grosso. O nome vem do dia em que o povo Paiter teve o primeiro contato com os brancos em 1969. Naquela época, a ditadura militar empurrava a fronteira agrícola para o norte. Mandava colonos do Sul para ocupar a mata, o lema era: “Terra sem gente para gente sem terra”.
Logo depois, os Paiter quase desapareceram: as doenças trazidas pelos brancos dizimaram o povo; de cerca de 5.000 indígenas restaram apenas 300. Hoje, são quase 1.700, espalhadas em 40 aldeias, e adotaram o sobrenome Suruí. Eles se consideram sobreviventes.
São eles que provam o que o agronegócio e seu lobby insistem em negar: não é preciso destruir a floresta para gerar riqueza. Com apoio crucial do WWF Brasil e da Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ), os Paiter Suruí desenvolveram uma economia florestal exemplar.
No coração dessa iniciativa está a Coopaiter, cooperativa que reúne 240 associados de 13 aldeias. Se tornou a primeira do estado a conquistar o Selo Nacional da Agricultura Familiar. Por meio dela, cafés especiais, cacau, castanhas e bananas chegam ao mercado, transformando a riqueza da floresta em renda.
Economia e meio ambiente
Na COP30 em Belém, o projeto deve servir como exemplo de que o Brasil é capaz perfeitamente de conciliar economia e meio ambiente.
O café especial dos Paiter Suruí é comercializado pela Três Corações sob o selo Tribos. Uma das produtoras é Celeste Suruí, a primeira barista indígena do Brasil. Na margem dos seus dois hectares de lavoura, árvores gigantes se erguem até o céu. Um casal de araras faz barulho em um galho alto. O ambiente vibrante da floresta impregna o café de Celeste, cujos grãos recebem notas máximas em degustações. Ela quase não usa agrotóxicos. “A gente cuida da floresta e a floresta equilibra o café.”
Mas Celeste tem pressa: precisa viajar para São Paulo, onde participará de uma premiação. Um café Paiter Suruí conquistou 100 pontos – a nota máxima – em uma degustação internacional, a primeira vez que um robusta amazônico alcança tal pontuação. Um kit de 150 gramas é vendido por R$ 599.
Os Paiter Suruí também apostam em um projeto de ecoturismo – ainda incipiente no restante da Amazônia, apesar do imenso potencial. Construíram a pousada Yabnay, com acomodações simples e restaurante que serve tambaqui de criação própria. Cientistas, alunos, estudantes e curiosos visitam o local, encantando-se com a exuberância verde, o canto dos pássaros e a paz da floresta.
Os verdadeiros primitivos
Nada disso teria provavelmente acontecido sem a obstinação de Almir Suruí, cacique que há décadas consegue captar recursos e apoio internacional para seu povo. De fala pausada e corpo largo, Almir já recebeu diversas premiações, incluindo o chamado “Nobel Verde”.
Mas o protagonismo dele e de sua família – sua filha Txai Suruí é influenciadora e ativista – também desperta críticas e ciúmes. Outros líderes indígenas o acusam de concentrar recursos e de agir como se falasse por todos. Esses conflitos internos já enterraram, no passado, o primeiro projeto indígena de venda de créditos de carbono – que agora tenta renascer, mais maduro.
Os Paiter Suruí mostram que a floresta pode ser um bom negócio. Seu exemplo evidencia que muitos povos indígenas – dependentes do Bolsa Família – precisam de incentivos mais sólidos para desenvolver suas terras de forma sustentável.
Mesmo assim, a Terra Indígena Sete de Setembro segue ameaçada por pecuaristas ilegais, garimpeiros, madeireiros e caçadores. São eles os verdadeiros primitivos – aqueles que chegaram com a BR-364 e continuam vivendo da destruição.
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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha, Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
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