25/09/2025 - 9:05
A PEC da Blindagem não foi a primeira tentativa de manutenção de privilégios pelo parlamento brasileiro. No século 19, parlamentares também agiram para preservar os interesses da elite agrária, comercial e política.353. Esse foi o número de deputados federais que votaram a favor da Proposta de Emenda à Constituição que tentou alterar o artigo 43 da Constituição brasileira. De forma curta e grossa, a PEC da Blindagem, como ficou conhecida, foi uma tentativa de ampliar as prerrogativas e garantias de todos os congressistas, com o objetivo de dificultar que eles pudessem ser alvos de processos judiciais.
A proposta previa ainda que os parlamentares do Congresso Nacional “não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa”.
Pois bem. Ainda que a PEC da Blindagem tenha sido barrada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado por unanimidade na quarta-feira (24/09), após mobilização popular, é preciso estarmos atentos para o fato de que a manutenção de privilégios não é novidade no parlamento brasileiro.
Parlamento como instrumento de exclusão
Num outro setembro, há exatos 175 anos, duas importantes leis foram aprovadas no Brasil. O contexto era outro: o Brasil era um império escravista, no qual a cidadania e o direito ao voto eram usufruídos por um número reduzido de brasileiros, excluindo de antemão todas as pessoas escravizadas, todos os indígenas, todas as mulheres, e todos os homens livres que ganhassem ao menos de 100 mil réis por ano.
O critério censitário imposto ao direito de voto no Brasil Imperial produzia uma exclusão ainda mais profunda. A renda mínima exigida correspondia, em média, ao faturamento anual de um comerciante de médio porte, mas era seis vezes menor que o valor de mercado de uma pessoa escravizada em 1850. A disparidade revela como o acesso ao voto estava intimamente ligado à posse de escravizados, estabelecendo uma conexão direta (mas não obrigatória) entre cidadania política e propriedade de seres humanos.
Dito de outra forma: ser proprietário de escravizados era uma das garantias de exercício político no Brasil de então.
Essa correlação entre a propriedade de pessoas escravizadas e a organização e prática da política formal, fez com que parte significativa do parlamento brasileiro colocasse seus interesses de senhores de escravizados como sinônimo dos interesses de toda nação – que era majoritariamente formada por pessoas escravizadas, e homens e mulheres livres pobres que não tinham acesso à política formal.
Preservação dos interesses da elite
Foi em nome desses interesses e da urgência em acobertar crimes cometidos por políticos e por importantes membros da elite econômica do país, que foram aprovadas em setembro de 1850 a Lei Eusébio de Queiroz (04/09) e a Lei de Terras (18/09), indicando uma mudança fundamental em relação ao trabalho, à escravidão e à estrutura fundiária.
A Lei Euzébio de Queirós abolia, pela segunda vez, o tráfico de africanos escravizados para o Brasil. A primeira lei de extinção do tráfico negreiro no Brasil foi aprovada em 1831, sob forte pressão da Inglaterra. Poucos anos depois, o comércio de africanos escravizados foi retomado com intensidade, entre 1835 e 1850, mais de 850 mil africanos foram desembarcados ilegalmente no país.
Com a anuência do Estado brasileiro, autoridades locais, forças policiais, grandes comerciantes e proprietários rurais participaram ativamente da manutenção do tráfico, consolidando uma prática criminosa que envolvia os principais setores da elite econômica e política do Império.
Quando a Lei Eusébio de Queirós foi aprovada, em 1850, encerrando oficialmente o tráfico atlântico, o texto legal não fez nenhuma menção aos crimes cometidos ao longo das duas décadas anteriores.
A omissão revelava a conivência do governo imperial diante das violações e protegia de qualquer responsabilização os grandes traficantes e políticos que haviam se beneficiado diretamente da chegada maciça de africanos escravizados. A medida acabou preservando os interesses da elite agrária, comercial e política, valorizando os cativos já existentes no país e assegurando a continuidade da economia escravista.
Se isso não bastasse, duas semanas depois outra lei foi outorgada. A Lei de Terras estabeleceu que o acesso a novas áreas agrícolas só poderia ocorrer por meio da compra, extinguindo a possibilidade de aquisição pela simples posse. Na prática, a lei impedia que trabalhadores pobres livres ou futuros libertos pudessem conquistar terras, uma vez que não tinham recursos financeiros, garantindo que a propriedade rural permanecesse concentrada nas mãos da elite.
Assim, o Parlamento brasileiro fez com que as duas medidas juntas garantissem que o poder econômico e político continuasse concentrados nas mãos dos senhores de escravos, que mantiveram a escravidão vigente por mais 38 anos, usando de maneira deliberada africanos que haviam sido escravizados de maneira ilegal segundo as próprias leis brasileiras.
E assim como ocorreu no último domingo, quando multidões de brasileiros tomaram as ruas para denunciar o absurdo da PEC da Blindagem, as mudanças sociais, econômicas e políticas do final do século 19 que levaram à abolição da escravidão em 1888 só ocorreram por conta da mobilização popular, por meio daquele que foi o primeiro grande movimento social brasileiro: o abolicionismo.
Embora nem a abolição da escravidão, nem a instauração da república (1889) tenham abalado a concentração fundiária no Brasil, o jogo político passou a se dar de outra forma, e as ruas continuaram a ser um espaço poderoso para a população conquistar e exercer direitos.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.