Uma das teorias da conspiração mais absurdas do momento propaga falsamente que a primeira-dama da França seria transsexual. O ódio a mulheres que ousam fugir dos padrões não tem limitesDesde que virou primeira-dama da França, a ex-professora Brigitte Macron, de 72 anos, já sofreu todo tipo de ataques. Ela é 24 anos mais velha que o marido, o presidente Emmanuel Macron, e não é uma mulher com uma beleza padrão (leia-se, com aparência jovem, como ainda manda o figurino).

Isso fez com que ela virasse um alvo perfeito para ataques misóginos. Brigitte é também uma mulher independente e inteligente, o que incomoda ainda mais os ultraconservadores.

Agora as coisas alcançaram um outro patamar. Uma das teorias da conspiração mais absurdas do momento vem propagando que Brigitte “nasceu homem” e que seu nome seria Jean-Michel Trogneux (!). O ódio (mentira também é violência) a mulheres que ousam fugir dos padrões não tem limite.

É chocante, mas essa teoria tem sido divulgada pela influenciadora de extrema direita Candace Owens, um fenômeno da comunicação ultraconservadora dos EUA.

Candace, que publicou a teoria em um podcast ouvido por milhares de pessoas, está agora sendo processada pelo presidente francês e pela primeira-dama.

O mundo é tão misógino e a extrema direita está tão fora de controle que um presidente precisa processar uma influenciadora de outro país por espalhar mentiras desse nível sobre a sua esposa. Os advogados do casal afirmam que Brigitte se tornou vítima de “uma campanha de humilhação global” e de um “bullying implacável em escala mundial” (o que é verdade). Segundo eles, Trogneux é, na verdade, o irmão mais velho de Brigitte, de 80 anos.

Era das fake news

Vivemos na era das fake news, onde qualquer teoria maluca pode virar realidade. Esse tipo de mentira atinge muito as chamadas “pautas de costume”, aquelas que falam sobre diversidade, sexismo, homofobia e por aí vai.

Mas a invenção de que uma mulher fora dos padrões “nasceu um homem” é mais simbólica. Mulheres em esferas de poder são comumente “acusadas” de serem muito masculinas.

Esse tipo de comentário atingiu, por exemplo, a ex-presidenta Dilma Rousseff e também a ex-primeira-dama americana Michelle Obama. De acordo com os moldes da extrema direita, mulheres devem seguir o padrão “belas, educadas e do lar”. O caso de Brigitte leva tudo isso a um nível absurdo.

Claro, se Brigitte tivesse realmente nascido homem, isso não seria problema algum. Seria legal se um dia uma mulher trans fosse primeira-dama. Mas esse não é o caso de Brigitte, vítima constante do etarismo.

No caso da fake news contra a primeira-dama, o fato de “ter nascido homem” é visto como algo negativo. Ou seja, ela é vítima de misoginia por ataques que também são transfóbicos.

A fake news absurda sobre Brigitte mostra que, para muitos, é mais fácil acreditar que uma mulher nasceu homem e escondeu isso de todo o mundo, por meio de uma saga rocambolesca, do que acreditar que um homem pode casar com uma mulher mais velha por amor.

Sim, eu ouvi o episódio de podcast no qual essa mentira é divulgada e nada ali faz sentido. E o programa ainda está disponível e é facilmente encontrado nas plataformas de áudio.

É importante lembrar que a diferença de idade só vira um problema quando a mulher é mais velha que o homem. O contrário é completamente aceito. O presidente Donald Trump, por exemplo, tem 79 anos e é casado com Melania, de 55. A diferença de idade entre os dois é a mesma de Macron e Brigitte, mas isso não é visto como um problema, inclusive porque Melania, ex-modelo e com jeito de “esposa troféu”, é o estereótipo perfeito de uma primeira-dama “padrão” para acompanhar um homem como Trump.

Brigitte já havia sido alvo do bolsonarismo

A aparência e a idade de Brigitte já fizeram com que ela virasse vítima também da misoginia do ex -presidente Jair Bolsonaro, que criou um vergonhoso incidente diplomático em 2019. Na ocasião, um seguidor de Bolsonaro postou uma montagem que mostrava fotos dos presidentes acompanhados de respectivas suas esposas e escreveu “Entendeu agora por que Macron persegue Bolsonaro?”. O seguidor ainda acrescentou “é inveja presidente do Macron pode crê (sic)”. Bolsonaro respondeu ao comentário dizendo: “não humilha kkkkk”. Uma vergonha.

O bullying contra Brigitte é mesmo global. Uma prova disso é que a teoria da conspiração de que Brigitte teria nascido homem começou na França anos atrás e, agora, se espalhou na voz da comunicadora de extrema direita americana. O caso tem sido usado como exemplo da dificuldade do combate às notícias falsas no mundo todo e como elas se espalham.

A ação penal movida pelo presidente da França e sua esposa acontece em um momento em que poderosos, como oligarcas da tecnologia e o próprio presidente dos Estados Unidos, defendem a “liberdade de expressão irrestrita”. Vamos lembrar: mentira não é liberdade de expressão.

E, claro, infelizmente, Brigitte não é a única mulher a sofrer esse tipo de calúnia. Mulheres são as principais vítimas de violência política e fake news. E o ódio a mulheres engaja e, além de tudo, é lucrativo. A influenciadora (precisava ser uma mulher?) deve estar ganhando muito dinheiro com isso…

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.