20/02/2025 - 17:42
Relatos de discriminação abrangem comentários sobre a aparência e dificuldades com o idioma, além de recusa de atendimento médico.Constrangimentos, xingamentos e recusas de atendimento no serviço público: brasileiros que vivem na Alemanha relatam que convivem com diferentes formas de xenofobia no país. Um dos fatores por trás dos casos, segundo especialistas, é o discurso anti-imigração adotado por políticos, sobretudo pelo partido de ultradireita Alternativa para Alemanha (AfD), segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto (21%) para as eleições deste domingo (23/02).
“Tem situações que fico na dúvida se foi racismo, ou xenofobia, mas essa foi bem evidente”, conta Isabel, estudante brasileira em Düsseldorf. Em 2019, quando chegou ao país, ela precisou abrir uma conta em banco. Na ocasião, o atendente perguntou se ela preferia ler o contrato em inglês em vez de alemão, e ela respondeu que sim. “Ele disse que nesse caso aquele banco não era para mim, eu deveria virar as costas e ir embora. São experiências assim, nas entrelinhas.”
Os problemas não param por aí. Outros brasileiros têm dificuldade de acessar o serviço de saúde por conta do preconceito. Ao procurar um endocrinologista para tratar um nódulo na tireoide, Alessandra obteve como resposta que não seria atendida, por não falar alemão. “Me mandou voltar na semana seguinte com uma tradutora. Depois desse dia, tenho a sensação que preciso colocar uma armadura diária porque não sei quem vai vir com pedras na mão para me atacar pelo fato de eu ser uma imigrante.”
Na avaliação da presidente da ONG Janaínas, que presta consultoria a brasileiras em casos de xenofobia, Evelyne Leandro, a vida dos imigrantes brasileiros pode ficar mais difícil no país com o aumento da participação política da AfD no Bundestag (câmara baixa do Parlamento alemão). “O receio vai fazer parte das nossas vidas, as microagressões vão aumentar, talvez haja uma ausência de políticas públicas que nos protejam”, afirma.
Xenofobia em alta
Não há dados oficiais que indiquem o número de casos de xenofobia contra brasileiros na Alemanha. A Embaixada do Brasil em Berlim foi procurada, mas não informou se recebeu denúncias de situações desse tipo.
No entanto, um levantamento do Ministério do Interior alemão acompanha os registros de crimes de ódio no país. Entre eles, os de racismo e xenofobia. Os dados apontam para um crescimento de 813% dessas queixas entre 2019 e 2023. Elas passaram de 1,6 mil para 15 mil denúncias.
“Quando os políticos dão um sinal para população, a população se sente autorizada a tratar mal estrangeiros. Isso não é um fenômeno da Alemanha, isso acontece em qualquer outro país europeu onde a direita ganhou uma expressão”, explica o sociólogo da Universidade Livre de Berlim, Sergio Costa.
Ele lembrou a tentativa do candidato a chanceler federal alemão Friedrich Merz, da União Democrata Cristã (CDU), de aprovar um projeto que pedia restrições à reunificação familiar e a rejeição de imigrantes nas fronteiras. Para aprovar a moção, ele contou com apoio da AfD. “Mesmo entre eleitores mais moderados, como aqueles que votam na democracia cristã, esse discurso xenófobo é alimentado por lideranças do partido, que apostam nesse discurso como uma maneira de não perder votos para a AfD.”
Dados compilados pela Statista revelam que, em 2024, 13,3% da população acreditava que o país estava em risco por causa dos estrangeiros. Ao todo, 15,6 milhões de imigrantes vivem na Alemanha e representam 19% da população. Ainda de acordo com a pesquisa, 15,3% dos alemães consideram que os estrangeiros só estão no país para se aproveitar de benefícios sociais, e 11% alegam que, em caso de desemprego, os estrangeiros devem ser deportados.
“Esse é o mal causado pela AfD. Ela conseguiu traduzir frustrações diversas e oferecer um discurso que explica as insatisfações e ressentimentos através da presença de estrangeiros”, pondera Costa. “São discursos muito vagos que acabam se valendo da desinformação para dar corpo a insatisfações que têm outras razões.”
No trabalho, na escola e em casa
Brasileiros que vivem em diversas cidades da Alemanha relatam casos de xenofobia que ocorrem nos habitantes mais variados. Cleuza foi alvo de preconceito por parte dos colegas na empresa em trabalhava. A tradutora mora na Saxônia, um dos estados de maior capilaridade da AfD, onde o partido conquistou 30,6% dos votos na última eleição estadual.
“Faziam de conta que não me entendiam, diziam que eu não falava alemão direito. Eu só queria ganhar meu pão e ir para casa. Foi bem difícil e no fim das contas, não quis mais trabalhar lá e pedi para sair, porque o ambiente era pesadíssimo. Sei que não foi pessoal porque outros também foram vítimas”, relata.
Já Solange conta que recorreu ao atendimento de psicologia escolar após o filho de 6 anos ser discriminado pela professora. “Ela começou a detoná-lo, dizer que ele não conseguia acompanhar a turma e que nunca iria para o ginásio. Conversando com outros pais, descobri que ela tinha a mesma atitude com outras duas famílias estrangeiras. Então foi sim racismo”, relata. “Tirei ele da escola e procurei ajuda do estado. Fiquei muito mal, porque temos o direito de ficar aqui e temos que passar por isso.”
Em Dresden, outro reduto da AfD, Daniela recebeu pelo correio o panfleto da sigla que imitava uma passagem de avião para deportação de imigrantes. “Foi violento porque sou estrangeira, meu marido viu que foi um homem idoso, de cabelo branco, que colocou na caixa de correio, que tem nosso sobrenome. Foi um choque de realidade ver esse comportamento. Já teve outras situações de gente cuspindo do meu lado ou de não me cumprimentarem de volta”, diz. “O fato de ser lida como branca no Brasil não me protegeu na Alemanha.”
AfD e o avanço da xenofobia
Os casos de xenofobia na Alemanha não começaram com o surgimento da AfD, fundada em 2013. Segundo Sergio Costa, a discriminação aumentou no país após a reunificação da Alemanha em 1990. Ele explica que com a integração, os estados da antiga Alemanha Oriental e as cidades industriais perderam relevância econômica no país.
Além disso, naquele período, agendas de diversidade social ganharam força no país. “Essa transformação não é aceita por todos os grupos. As pessoas veem na possibilidade de hostilizar estrangeiros uma forma ilusória de se rebelar contra uma influência perdida, a exemplo de homens que perderam parte da influência com o crescimento da igualdade de gênero”, afirma o pesquisador.
Por fim, nesse processo, estrangeiros, seus descendentes e alemães naturalizados passaram a ocupar espaços na sociedade alemã. “O discurso xenófobo é uma maneira fácil de traduzir essas insatisfações que tem outros motivos, como a globalização e a perda de importância econômica.”
Um dos que tentaram arregimentar esse discurso durante a reunificação foi o Partido Nacional-Democrático da Alemanha (NPD), que nunca obteve votos para chegar ao Bundestag. No caso da AfD, o partido não nasceu ultradireitista. No entanto, essa ala ganhou espaço na legenda, expulsou os fundadores moderados e eurocéticos e se promoveu sob uma plataforma de discriminação com estrangeiros.
Preconceito multifacetado
Evelyne Leandro ressalta que os 160 mil brasileiros na Alemanha são um grupo heterogêneo, por isso, a xenofobia tem várias camadas. “Quando você soma a raça à questão econômica, há mais microagressões”, afirma.
Rosa, moradora da Turíngia, onde o brasileiro Torben Braga se reelegeu deputado estadual pela AfD em 2024 e estado da maior proporção de votos para a sigla (32,8%), também já foi vítima de xenofobia. “Eu estava andando na rua com algumas amigas e alemães passaram de carro, gritando: ‘Fora! Alemanha para alemães”, conta.
Outra situação ocorreu em uma confraternização com amigos do marido, que é alemão. “Um homem perguntou para meu marido se meus pelos pubianos eram iguais ao meu cabelo. Por que ele se achou confortável para dizer isso? Levantei e fui embora.” Para ela, pesou o fato de ser uma mulher negra. “Se talvez eu fosse uma estrangeira de pele clara ele não faria esse tipo de pergunta. Naquele momento de impotência, foi traumático.”
Já Mayara, ao tentar entrar numa festa, foi barrada pelo segurança, que liberou a entrada das duas amigas que a acompanhavam, uma alemã e outra polonesa. “Pediu meus documentos, coisa que não fez com as outras duas. Perguntou minha idade, eu já tinha 30 anos, e depois de onde eu vinha e disse que eu não iria entrar. O caso foi parar na Justiça.”
Na Alemanha, vítimas de xenofobia podem procurar à Agência Alemã de Antidiscriminação. O órgão oferece aconselhamento aos imigrantes em casos de discriminação e indica quais as medidas judiciais podem ser tomadas. Ela foi criada em 2006, junto com uma lei antidiscriminação, que prevê o pagamento de indenização quando o autor é responsabilizado.