04/01/2002 - 8:00
“Armínio está conduzindo com rara competência a política monetária do País”
“Se um regime econômico morre para dar lugar a outro, às vezes arrasta a política”
DINHEIRO ? Em 2001, a economia brasileira foi marcada por racionamento, crise na Argentina e terrorismo. O sr. espera um 2002 melhor?
AFFONSO CELSO PASTORE ? Sempre existem coisas impossíveis de prever, mas minha impressão é que 2002 vai ser significativamente melhor que 2001. Algum tempo atrás, havia um pessimismo grande, pois se imaginava que as exportações não reagiriam ao câmbio favorável. Mas agora a depreciação produziu uma redução importante das importações, sustentou as exportações e diminuiu o déficit em conta corrente. Dada a melhora nas contas externas, bancos e empresas deixaram de comprar dólares para proteger seus passivos e produziram uma queda na taxa de câmbio. Além disso, o fluxo de investimento direto caiu menos do que se esperava. Quando melhora o fundamento externo, melhora também a parte fiscal, o que produz uma queda no risco Brasil. Não é de se estranhar com todos esses fatores que o Brasil tenha descolado da Argentina. No auge da crise argentina, estamos com o câmbio estável, juros futuros caindo e taxa de risco diminuindo. Isso não é uma surpresa. Simplesmente tardou a que se percebesse o efeito do câmbio nas contas correntes. Quando isso apareceu, a casa ficou em ordem.
DINHEIRO ? Isso fará o Brasil crescer mais em 2002?
PASTORE ? Eu diria que não, porque ainda há uma economia mundial estagnada. E o Brasil ainda tem um déficit em conta corrente para solucionar. Se, nessa situação de retração da economia mundial, o Brasil acelerasse o crescimento da economia, abriria novamente o déficit externo, que poderia ir a US$ 27 bilhões. Com um crescimento mais moderado, acho perfeitamente possível em 2002 o País ter um superávit da balança comercial da ordem de US$ 5 bilhões ou US$ 6 bilhões, o que levaria a um déficit externo ao redor de US$ 20 bilhões. Com um pouco de sorte, talvez até um pouco menos. De qualquer forma, vamos para um ano de crescimento relativamente baixo, perto de 2% do PIB.
DINHEIRO ? O que sr. define como sorte nessa equação?
PASTORE ? Se persistir a liquidez internacional, o Brasil vai repetir um volume de investimento estrangeiro parecido com o de 2001. Quando começou o desaquecimento da economia norte-americana, e depois dos ataques terroristas de 11 de setembro, havia a noção de que a aversão ao risco produziria um forte encolhimento nos fluxos de capitais. E isso pressionaria ainda mais a taxa de câmbio. Bom, o fluxo de investimento direto caiu menos do que se imaginava. A explicação está na forte expansão da liquidez nos EUA. Foram onze reduções da taxa de juros desde o começo de 2001 até agora. Hoje, a taxa é de apenas 1,75% ao ano. É uma das maiores expansões de liquidez em décadas. E quando isso ocorre, visivelmente tem um efeito positivo sobre o fluxo de capitais. Sempre vai sobrar algum para vir para o Brasil.
DINHEIRO ? Nessas circunstâncias, o dólar vai cair ainda mais?
PASTORE ? O câmbio vai encontrar um ponto de equilíbrio, que
eu não sei qual é. Também não acredito que o governo deixaria
que o real se valorizasse sem parar. Ele tem instrumentos
para evitar que isso aconteça e até já começou a agir nessa
direção ao parar de vender US$ 50 milhões por dia. Não acredito
que o câmbio vai derreter.
DINHEIRO ? O Banco Central deveria se preocupar mais com a cotação do dólar ou com a inflação?
PASTORE ? O Armínio Fraga está olhando para as duas coisas. Ele tem dois olhos. Com um, ele olha para a inflação, e com o outro, para o câmbio. Mesmo porque ele tem de estar atento para as duas variáveis. Câmbio também é um objetivo indireto de política econômica, já que não se pode descuidar da conta corrente. No passado, quando nós descuidamos da conta corrente, tivemos custos amargos. Nós sofremos ataques especulativos porque deixamos de lado o déficit externo.
DINHEIRO ? Mas 2002 mal começou e já há analistas que duvidam que a meta da inflação será alcançada?
PASTORE ? Eu acho que a meta de inflação deste ano é factível. Em 2001, o Brasil sofreu choques fortíssimos, o que nos jogou fora da meta. A reação do Banco Central, ao elevar os juros, foi correta. Ele acomodou o choque e evitou repercussões piores. Eu acho que a tendência é a inflação, aos poucos, voltar para a meta.
DINHEIRO ? A instabilidade cambial, que foi a marca de 2001, não traz muitos custos para as empresas?
PASTORE ? Esse grau de impaciência nas classes produtoras é muito mais aparente nos jornais do que nas festas. Nas festas, os empresários são muito mais alegres. As empresas brasileiras têm lucro, não estão quebrando. Não aconteceu nenhuma Enron no Brasil. Quem correu atrás de hedge achando que o dólar ia chegar a R$ 3,00 agora descobriu que o câmbio podia ficar bem menor. Esse aprendizado precisou da evidência empírica. Só que não dá para voltar no tempo e desfazer o passado.
DINHEIRO ? Com o dólar perto de R$ 2,30, o ano de 2002 será bom para os exportadores?
PASTORE ? Ninguém faz milagre. O comércio mundial está estagnado. As exportações brasileiras para
a Argentina caíram 40% em novembro de 2001 em relação ao
mesmo mês do ano anterior. Ninguém tem a ilusão de que a Argentina vai se recuperar. Os argentinos devem continuar em
crise por um bom tempo. E os preços das commodities estão deprimidos. Não se pode esperar um grande crescimento de exportações o ano que vem. A minha impressão é que exportar
US$ 60 bilhões não é sonho. Mas exportar US$ 70 bilhões é sonho.
A realidade internacional não permite mais.
DINHEIRO ? Como o sr. vê a ruptura econômica na Argentina?
PASTORE ? Morre um regime econômico e nasce outro no lugar.
Às vezes, junto com o regime econômico, morre também o político, como estamos vendo agora. Eu acho que o estrago que
esse país poderia causar sobre seus vizinhos já está feito. O que aconteceu não foi surpresa para ninguém. Falta agora reconstruir
o país num outro regime.
DINHEIRO ? O Brasil não poderia estar sujeito a novos choques?
PASTORE ? Eu não acredito que venha uma nova onda de choques que desestabilize a economia brasileira agora, depois da moratória argentina. Quatro ou cinco meses atrás se ouvia a seguinte frase, com grandes ares de sabedoria: é melhor a Argentina quebrar logo, que assim se define. Ainda bem que ela não quebrou logo. Deu tempo para que o Brasil produzisse essa melhora nos seus fundamentos econômicos para descolar. A sabedoria de coquetel de fim de tarde nem sempre é o melhor tipo de conhecimento que a gente tem de usar em análise econômica.
DINHEIRO ? Alguns analistas acreditam que o descolamento da Argentina de fato vai ocorrer quando o risco Brasil voltar aos níveis de antes da crise…
PASTORE ? Eu discordo dessa análise. O risco Argentina estava em 2 mil pontos e o do Brasil em 1.200. O risco Argentina foi para 4 mil pontos e o brasileiro para 900. Esses analistas querem que o risco volte para 700, para então dizer que é um descolamento. Se não estamos nesse nível, estamos próximos dele. Há um descolamento importante sim. O Brasil não é o México, não é o Chile, nem a Suíça, nem a Alemanha. Mas o Brasil de hoje é muito melhor do que o de seis meses atrás.
DINHEIRO ? O sr. está bastante otimista em relação à economia brasileira?
PASTORE ? As contas correntes eram o único fator que estava
mal. O lado fiscal não está ruim. O governo está fazendo um superávit primário de quase 4% do PIB, continuamente, há 3 anos. Esse é um belo fundamento. As metas de inflação e a política monetária estão sendo aplicadas com rara competência. O crescimento econômico brasileiro não foi brilhante, mas o País cresceu em um ano em que o mundo encolheu uma montanha. Assim, dadas as circunstâncias, teve uma boa performance. O que vinha desajustado era o déficit em conta corrente excessivo. Isso porque o Brasil cometeu um crime no passado, que foi valorizar sua taxa de câmbio durante quatro anos.
DINHEIRO ? A desvalorização de 1999, então, recolocou a economia nos trilhos?
PASTORE ? Depois da máxi, saltamos de um rombo comercial de
US$ 9 bilhões para déficit zero. Só que as pessoas ficaram obcecadas por um superávit de US$ 5 bilhões. No Brasil, supostamente porque vivemos ao Sul do Equador, como dizia o professor Mário Henrique Simonsen, a lei da gravidade puxa para cima, não para baixo. A teoria econômica que vale para os países desenvolvidos, não vale para o Brasil. Portanto, o País desvaloriza
o câmbio mas não melhora o déficit externo? Melhora sim, só que
se retardou um pouco o ajuste. Com uma nova depreciação cambial, o superávit voltou a crescer. Quando as coisas começam a se ajustar não tem surpresa: o País começa a andar melhor. Eu não fiquei mais otimista apenas porque estou tomando calmante. Fiquei porque os dados externos melhoraram.
DINHEIRO ? Mas é possível o Brasil sair de um crescimento medíocre de 1% e 2% do PIB, sem prejudicar as contas externas?
PASTORE ? Não há nenhuma razão para o País ficar patinando em um crescimento entre 1,5% e 2%. Se o Brasil voltar a controlar o câmbio, aumentar o gasto público, abandonar o regime de meta de inflação e seguir um programa político que uma certa ala costuma pregar, aí as coisas pioram.
DINHEIRO ? O sr. se refere ao PT ou a outros candidatos de oposição?
PASTORE ? Não. Estou me referindo a uma certa ala do próprio PSDB, que no fundo quer controlar mais a economia, baixar a taxa de juros a fórceps, controlar o câmbio e os fluxos de capitais. Se for assim, o Brasil vai patinar. Não sei se dá para crescer 5%. Mas, talvez, 4%, 4,5%. É só deixar o câmbio ajustado.