14/04/2004 - 7:00
DINHEIRO ? O governo tem sido acusado de estar mais preocupado em cumprir as metas com o FMI do que as promessas sociais da campanha eleitoral. O sr. está desiludido com isso?
ODED GRAJEW ? Não estou desiludido. E não acho que haja despreocupação com a área social. O presidente Lula, aliás, é o mais preocupado com essa questão. Há um desconhecimento do estado das contas públicas em janeiro de 2003 e a situação de vulnerabilidade em que a economia se encontrava. O Estado brasileiro se endividou de uma forma fantástica nos últimos anos. E o Lula e sua equipe decidiram enfrentar a situação sem torná-la inteiramente pública. O governo fez isso de propósito.
DINHEIRO ? O governo não tinha obrigação de ser mais transparente sobre a dimensão do problema?
GRAJEW ? Ele tinha duas saídas. Uma era falar: ?Minha situação
é essa, não espere milagres, porque, devido a essa situação, não tenho recursos?. Mas se fizesse isso e expusesse a situação de
forma crua, aconteceria aqui o que aconteceu na Argentina. O Brasil é muito vulnerável e as linhas de crédito poderiam secar. Então os atuais governantes agiram da mesma forma de um empresário endividado. Na hora de ir ao banco, ele faz a barba, coloca seu melhor terno, porque se ele entrar na agência com a roupa esfarrapada, o gerente não empresta para ele. O que a gestão
Lula fez, e faz até hoje (e sofre por causa disso) é não demonstrar toda a situação de vulnerabilidade do País.
DINHEIRO ? Mas não resolveu a situação.
GRAJEW ? Dessa forma, ele conseguiu recuperar a credibilidade, os indicadores melhoraram, a desconfiança foi deixada de lado. As exportações continuaram crescendo. Mas isso tudo foi conquistado
às custas de não revelar o verdadeiro estado das coisas e as tremendas dificuldades do orçamento.
DINHEIRO ? O que o governo encontrou de tão ruim?
GRAJEW ? Muito menos dinheiro em caixa do que se supunha. O buraco era maior do que ele achava. Havia R$ 14 bilhões em com-
promissos não revelados antes. Eram tanto contas em atraso, como pagamentos que deveriam ser feitos em curto prazo. Havia contas não reveladas. Então ele assumiu os riscos para o bem do País, mas pagou um preço político alto, porque as pessoas achavam que o Tesouro Nacional tinha mais recursos do que efetivamente tinha. DINHEIRO ? Mas se essa fase já foi superada, o que falta para o crescimento?
GRAJEW ? Há um assunto que a sociedade, um dia, terá de enfrentar. É a questão da dívida. Esse tema não pode ser tratado como uma questão ideológica, mas como uma questão de sobrevivência. Todo mundo sabe que o rei está nu, que a situação é grave, mas ninguém fala do que está vendo. Com essa dívida, o País é inviável.
DINHEIRO ? Por quê?
GRAJEW ? O Brasil paga de juros um terço do que arrecada. É o mesmo caso de uma companhia que gasta um terço de seu faturamento pagando de juros. Não há empresa que sobreviva e possa crescer dessa forma. O empresário sabe do que estou falando. E mesmo assim só paga uma parte dos juros. Outra parte dos juros vai alimentar a dívida e aumentá-la ainda mais. A dívida está aumentando. A carga tributária é de 36% do PIB, mas a administração pública fica com 24%. O restante vai para o pagamento de juros.
DINHEIRO ? Como sair dessa armadilha?
GRAJEW ? Primeiro é necessário consciência. Os países europeus têm muita dificuldade de gerar emprego. Eles fizeram um acordo no âmbito da Comunidade Européia colocando como meta um déficit de 3% do PIB. Agora, há países como Alemanha e França sugerindo um déficit de 4% porque dizem que não conseguem gerar emprego e crescimento econômico com déficit de 3%. O Brasil é obrigado a gerar 4,25% de superávit. Falei em superávit de 4,25%. Se a Europa, que arrecada mais e deve menos, não consegue gerar crescimento com um déficit de 3%, é um sonho achar que vamos crescer com um superávit desse tamanho. Por isso o primeiro passo é deixar de sonhar, se conscientizar da situação e enfrentá-la. O que me assusta é que esse assunto não está na agenda, não está sendo discutido, não sai nos jornais. Enfim, é um tabu. O próprio FMI, Banco Mundial, Banco Interamericano sabem disso mais do que os brasileiros.
DINHEIRO ? Mais uma vez, não seria responsabilidade do governo expor essa situação?
GRAJEW ? Ele tem muita dificuldade de falar. Se levantar o assunto bruscamente, todos vão interpretar que haverá calote, etc. A sociedade também não fala. Muitos não têm consciência. Outros têm medo de tocar no assunto. Foi o que aconteceu na Argentina. Todos sabiam que ia falir, mas ninguém falava nesse assunto. Lula e seus ministros estão tentando discutir o assunto. Têm falado com a Argentina buscando uma solução conjunta. Também têm conversado com o Fundo Monetário Internacional para tirar do cálculo do superávit os investimentos em infra-estrutura e dar mais folga no superávit fiscal acertado com o FMI, hoje na casa de 4,25%.
DINHEIRO ? Existe alguma forma de fazer isso, sem renegociar a dívida?
GRAJEW ? Não, não há. A renegociação interessa a todos, inclusive aos credores. Veja o caso da Argentina. Seria melhor renegociar a dívida do que perder tudo que perderam. Isso é muito comum numa empresa. Os credores aceitam renegociar porque têm a garantia de receber e mantém a empresa viva para pagá-los.
DINHEIRO ? Historicamente os credores só aceitam renegociar quando há um calote, como aconteceu com a Argentina. Sua proposta é viável?
GRAJEW ? Houve vários casos de perdão da dívida em países mais pobres, como os africanos. Também existem exemplos de conversão de dívida em projetos ambientais. Por que não converter em projetos sociais? Há um ambiente favorável. O FMI e o Banco Mundial estão revendo suas políticas. Eles perceberam que essa situação inviabiliza os países, cria instabilidade social e econômica. O mundo está muito interligado. Cada distúrbio em qualquer ponto do planeta reflete em todo o mundo. Se o Brasil estiver à beira de uma bancarrota é uma ameaça para o mundo inteiro.
DINHEIRO ? Como fazer isso?
GRAJEW ? Eu tenho uma proposta de criar o Fundo Social Internacional. O Fundo Monetário Internacional empresta dinheiro para o país para equilibrar
sua situação econômica e pede contrapartidas econômicas. No caso do Fundo Social, os países levantariam quanto é necessário para investir em educação, saúde, assistência médica, etc. Aí parte da dívida seria convertida em um fundo para investimentos nessas áreas. O Fundo Social estabelece contrapartidas sociais. Esse fundo seria inclusive administrado pelos credores de forma que eles tenham controle dos recursos. Os credores dizem que não perdoam ou renegociam a dívida porque o dinheiro será mal utilizado.
DINHEIRO ? Se o governo não pode expor a situação, quem
deveria fazê-lo?
GRAJEW ? A sociedade.
DINHEIRO ? Não é vago?
GRAJEW ? Não acho. Tenho falado com o presidente Lula, com empresários, com sindicalistas. Isso é mais discutido mais fora
do País do que aqui. Sabe por quê? Eles sabem que o País é inviável com essa dívida. Tenho feito esse papel de alertar e levantar o assunto tabu. Há quem receba de forma positiva, há quem
ache que eu sou um cricri.
DINHEIRO ? Qual das duas reações o Lula tem tido?
GRAJEW ? O Lula sabe da situação, mas ele está tentando resolver sem muito alarde. Se ele fizer muito alarde ele piora a situação.
DINHEIRO ? Você pensa em articular um movimento para discutir a dívida?
GRAJEW ? Tenho sugerido para entidades empresariais a organização de um seminário para discutir isso do ponto de vista técnico, olhando os números. Falei também com o Jaques Wagner (coordenador do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social). Acredito que o Conselho possa ser um bom fórum. Lá a sociedade está inteiramente representada e o objetivo é discutir estratégias para o País.
DINHEIRO ? Logo após a posse de Lula, houve uma grande mobilização empresarial em torno de questões sociais. Os problemas gerenciais do governo não diminuíram esse ímpeto?
GRAJEW ? Os problemas foram basicamente de comunicação. Nunca quisemos fazer do Fome Zero um programa de doações. Sempre tivemos cuidado de não caracterizá-lo como ?Doe Ouro para o Brasil? ou ?Natal sem Fome?. As pessoas achavam que era um programa de doação de dinheiro. Essa impressão foi para a mídia como se o governo quisesse receber. Então tivemos de abrir a conta para receber doações, tamanha foi a demanda por elas. A sociedade se mobilizou tão rapidamente que considero que nosso propósito foi atingido. Do lado do governo houve uma revolução na área social.
DINHEIRO ? Nem todos fazem essa avaliação.
GRAJEW ? Vou explicar. Havia vários programas: vale-disso, bolsa-daquilo. Juntamos todos os programas no Bolsa Família. Os cadastros estavam todos contaminados. Havia amigos de prefeitos, parentes de vereadores, cabos eleitorais. Para unificar os programas e os cadastros foi necessário um ano de trabalho. Agora, temos 12 milhões de pessoas beneficiadas. A idéia é chegar a 50 milhões de pessoas no final do mandato de Lula.
DINHEIRO ? Sua saída do governo teve algo a ver com a dificuldade de implementação desses programas?
GRAJEW ? Não. Meu trabalho não dependia da máquina. Minha relação era pessoal com o próprio Lula. E tinha de fazer a ponte entre empresas e essas políticas públicas. Eu brincava que meu trabalho era Recurso Zero. Minha missão era ajudar a deslanchar esse envolvi-
mento das empresas com as políticas públicas. Nós conseguimos fazê-lo deslanchar. Nunca pretendemos monopolizar ou conduzir. Era deslanchar esse processo e fazê-lo tomar corpo, não comandá-lo. Isso aconteceu. Minha missão estava cumprida e resolvi sair.
DINHEIRO ? Os problemas de gerenciamento não prejudicaram a credibilidade do Fome Zero? Houve aquele caso da Gisele Bündchen que não conseguia entregar o cheque da doação.
GRAJEW ? O problema foi que o Fome Zero, como eu disse, não seria um programa de doações. Aliás, quando abrimos a conta corrente para doações, foi uma luta para conseguir tirar o cheque da Gisele. Pouca gente soube disso.