Por Sérgio Vieira

RESUMO

• No auge da pandemia, Brasil necessitava oxigênio. A White Martins não poupou esforços para produção
• Reativou planta parada havia 12 anos, mostrou os valores da companhia e saiu mais forte da crise
• Foco agora está em hidrogênio verde (H2V), possível divisor de águas na geração de energia limpa
• Governo sinalizou que vai investir em H2V
• Ministério de Minas e Energia apresentou ao Conselhão texto para estabelecer o marco legal, com foco na criação do Sistema Brasileiro de Certificação de Hidrogênio (SBCH2)
• Para analistas, busca pela descarbonização da indústria vai impulsionar o mercado de hidrogênio verde

 

O cenário era devastador entre meados de 2020 e o fim de 2021: o Brasil batia recordes de casos de contaminação e morte provocados pela pandemia da Covid-19 e figurava no topo do ranking mundial entre as nações mais afetadas pela crise sanitária. Manaus vivia uma realidade catastrófica. Não havia espaço em hospitais e faltava oxigênio no auge do colapso. A White Martins, empresa brasileira fundada em 1912 e que pertence ao grupo alemão Linde, líder global na produção de gases industriais, precisou mergulhar de cabeça no front desta guerra. Era necessário fornecer rapidamente o ar vital para doentes que estavam no limite, muitos em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Ninguém ali respirava bem. E, para atender, foi necessário aumentar de forma significativa a produção. A White Martins chegou a reativar uma fábrica na capital amazonense, que estava parada havia 12 anos. O consumo de oxigênio aumentou em 10 vezes. Militares da Marinha e da Aeronáutica atuaram para ajudar os técnicos da empresa nessa operação de guerra urbana de levar cilindros de ar para quem mais precisava naquele momento. “O que vivemos foi algo inédito, mas a gente teve a oportunidade de demonstrar os valores e a capacidade da empresa”, afirmou à DINHEIRO o presidente da empresa, Gilney Bastos.

Segundo Bastos, que também preside a Linde América Latina Sul (que compreende os negócios no Paraguai, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia e Peru), a White Martins saiu da crise mais forte e preparada, por ter aumentado a capacidade de produção. Desde o final de 2022, ela é também pioneira em hidrogênio verde no País. O gás é estratégico para a companhia e para a transição energética em direção a uma economia de baixo carbono.

Companhia, que tem 74 plantas industriais no País, deve fechar 2023 com faturamento de US$ 1,1 bilhão. No mundo, o grupo Linde tem receita de US$ 25 bilhões

A White Martins deve fechar o ano com faturamento de US$ 1,1 bilhão no Brasil, pouco mais de 60% da receita alcançada em toda a região comandada por Bastos (US$ 1,8 bilhão). No mundo, a Linde fatura US$ 25 bilhões. A White Martins está entre as cinco maiores operações do grupo no mundo, atrás de Estados Unidos, China, Inglaterra e Alemanha.

Mas o olhar da gigante do setor de gases industriais não está mais no duro passado vivido durante a pandemia. O foco hoje está bem direcionado. E passa pelo desenvolvimento do mercado de hidrogênio verde (H2V) no País, que pode ser um divisor de águas na geração de energia limpa.

“O Brasil tem obrigação de ser protagonista nesta nova ordem energética mundial”, afirmou o executivo. O hidrogênio é considerado verde quando produzido por meio de um processo conhecido como eletrólise da água, que separa as moléculas de hidrogênio das de oxigênio utilizando energia renovável, como solar e eólica.

Empresa obteve a certificação da fábrica de hidrogênio verde em Pernambuco, que irá produzir 156 toneladas por ano de H2V (Crédito:Carolina Oms)

Em um mercado promissor, mas ainda em expansão, a White Martins desempenha um papel relevante e de pioneirismo neste segmento. A companhia é a primeira a ter uma fábrica de H2V certificada no País, instalada em Pernambuco.

A unidade já existia e foi adaptada para produzir o gás, utilizado para abastecer uma empresa de alimentos. Em dezembro do ano passado, a unidade pernambucana da White Martins passou a ter o Green hydrogen certification, concedido pela empresa alemã TÜV Rheinland, referência mundial em certificação.

O processo de elaboração e implementação do sistema de gestão de hidrogênio verde e a validação pela companhia da Alemanha levou cerca de três meses. Serão produzidas 156 toneladas de H2V por ano. Para isso, a White Martins poderá receber até 1,6 MW de energia solar que será utilizada na obtenção do hidrogênio verde.

O presidente não revela o valor exato utilizado na transformação da fábrica, mas diz que a instalação de uma unidade de hidrogênio verde varia entre US$ 100 milhões a US$ 200 milhões. E a White Martins tem demonstrado disposição e caixa para ampliar as plantas industriais com esse novo modelo.

A empresa assinou memorandos de entendimento com os governos do Ceará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e com os complexos portuários de Pecém (CE), do Açu (RJ) e de Suape (PE), para a realização de estudos de viabilidade de implementação de projetos de hidrogênio verde.

“O Brasil é um ótimo mercado. Dificilmente temos alguma proposta de investimento recusada. Não há limitação. Há expectativa de muitos projetos em 2024.”
Gilney Bastos, presidente da empresa

POTENCIAL 

Nesse horizonte, a afirmação de Bastos sobre o protagonismo do Brasil nesse novo mercado faz todo sentido. Dois estudos detalham o potencial brasileiro na produção de H2V e a possibilidade de abastecimento de boa parte do mercado global.

• Relatório da consultoria Mirow & Co., chamado ‘Destravando o potencial brasileiro em hidrogênio verde’, mostra que há 40 projetos em andamento no País, a maioria no Nordeste. No mundo, são mais de 1 mil iniciativas ligadas à produção de hidrogênio de baixo carbono. Segundo o documento, o País pode se beneficiar de uma combinação de fatores como a grande disponibilidade de recursos solar e eólico, da boa condição geográfica, da infraestrutura de linhas de transmissão, e do baixo custo, em relação a maior parte dos países com projetos em andamento, da produção de H2V.

• Pesquisa produzida pela consultoria alemã Roland Berger vai na mesma linha. De acordo com o levantamento, o Brasil poderá faturar R$ 150 bilhões no mercado de hidrogênio verde. O crescimento das oportunidades pode representar investimentos de R$ 600 bilhões em unidades de produção de H2V no País em 25 anos.

Até o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já deu sinalizações públicas de que o governo irá investir no avanço da produção de H2V no País. Ele citou um estudo da Universidade de São Paulo (USP), que é estadual, para produção de hidrogênio verde a partir de etanol.

Mas criticou a falta de iniciativa da Petrobras, que não se engajou na pesquisa. “Não usamos o fundo verde para aquilo que de mais moderno há no País. Às vezes, o Estado brasileiro se omitiu para nos colocar na liderança da transformação ecológica no mundo”, disse o ministro no início de outubro. Segundo o titular da economia, o Brasil terá a chance de, durante a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30), que será realizada em Belém (PA), em novembro de 2025, ser a grande vitrine de oportunidades, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. “Não temos ainda alinhamento em torno disso no Brasil. Ainda estamos remando, envolvendo as pessoas”, afirmou, na ocasião.

A fala de Haddad mostra que há alguns gargalos que precisam ser superados, principalmente pelo poder público, já que a iniciativa privada tem feito a sua parte nessa fase inicial.

Um deles é o avanço, visto por muitos a passos lentos, das legislações e da implementação de um marco regulatório para o segmento. Há neste momento várias propostas em discussão na Câmara e no Senado.

No início de novembro, o Ministério de Minas e Energia apresentou ao Conselho Econômico Social Sustentável (CDESS), conhecido com Conselhão, texto preliminar de projeto de lei que será encaminhado ao Congresso para estabelecer o marco legal, que tem como foco a criação do Sistema Brasileiro de Certificação de Hidrogênio (SBCH2), contabilizando a emissão de gases de efeito estufa na cadeia de produção.

Um relatório da Comissão Especial de Transição Energética e Produção do Hidrogênio, da Câmara dos Deputados, define o Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio Verde (Rehidro), que garantiria desoneração dos impostos levando como base a quantidade de emissões de gases evitadas no processo. Mas nada ainda está perto de uma conclusão.

INCENTIVOS

O advogado Paulo Leme, sócio do escritório Dias Carneiro Advogados, entende que o País pode se beneficiar das condições climáticas e do foco ampliado no mundo para os processos de produção mais sustentável. “A necessidade de descarbonização da indústria, puxada pela Europa, vai impulsionar o mercado de hidrogênio verde. E não tem como não olhar para o Brasil nesse cenário”, disse Leme.

Ele reconhece que é importante haver definição por parte do governo dos caminhos que devem ser seguidos pelo setor. “Precisa estabelecer a definição, para saber os incentivos que poderão ser enquadrados. A impressão que eu tenho é que essa discussão está andando. Imagino que seja algo para daqui a três anos, com indústrias instaladas a partir da regulação definida. É importante esta segurança jurídica.”

Carlos Victal, gerente do IBP

“O Brasil tem grande potencial e está se preparando para atender essa demanda mundial de hidrogênio verde.”
Carlos Victal, gerente do IBP

Para Carlos Victal, gerente de sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), o Brasil vai desempenhar um papel global de destaque na produção de H2V. Até 2030, a demanda de hidrogênio verde deverá ser da ordem de 20 milhões de toneladas ao ano na Europa, sendo metade de produção própria e outra metade por importação.

E é essa janela que já está aberta para o mercado brasileiro. “O Brasil tem grande potencial e está se preparando para atender essa demanda mundial. O que precisa é estabelecer as regras de produção, metodologia e logística”, disse. “É importante a sensibilização do governo brasileiro para avanço na infraestrutura e capacitação de profissionais. Isso tudo tem se refletido nos textos de projetos de lei sobre o assunto.”

Victal pondera que a regulamentação, no entanto, não pode atrapalhar os projetos que estão em vigor. “Esse é o melhor cenário, com uma atividade já funcionando e depois se estabelece uma legislação para dar mais consistência e mais credibilidade aos projetos.”

Manaus enfrentou caos durante a pandemia, com falta de leitos e explosão da demanda por oxigênio

As oportunidades estão colocadas. E os desafios também. Nesse cenário promissor, e ao mesmo tempo desafiador, a White Martins amplia o fôlego na produção do hidrogênio de baixa emissão.

“A empresa está pronta para este momento. Temos muitas negociações com parceiros. A White Martins tem um tamanho, pela capacidade de produção, que se encaixa bem ao Brasil. O momento é bom, as reformas vêm avançando, o ciclo de queda de juros vem seguindo, e o governo direcionando o crescimento. O País tem demanda interna muito boa. Precisa só de um vento a favor,” disse o presidente.

Entrevista
Gilney Bastos, presidente da White Martins

“O hidrogênio verde vai alterar a ordenação global de energia”

(Divulgação)

Olhando para desafios enfrentados durante a pandemia, como a empresa se vê agora?
Estamos bem mais fortes, depois desse período de pandemia. A gente teve desafios imensos. Nossa atuação foi direta, vivendo dentro da situação. Houve muitos desafios logísticos. O bacana foi a vontade de todos os funcionários de ajudar, de se comprometer, de fazer o serviço de quem ficava doente. Ninguém se negou a ir para Manaus. Foi a oportunidade para fazer valer a missão da companhia. A empresa voltou a ter protagonismo.

O faturamento vem crescendo?
Na pandemia a gente sofreu um pouco, mas o objetivo não era crescer no faturamento e sim atender às necessidades do País. Hoje a gente está crescendo, normalmente, no mesmo nível que o País cresce. Se a gente trabalhar bem e conseguir as oportunidades que o País apresenta, a gente cresce no limite do Brasil. Vamos andar juntos. Somos uma empresa de US$ 1,1 bilhão no Brasil. A região que eu represento, a América Latina Sul, tem receita por volta de US$ 1,8 bilhão.

Quais tem sido os investimentos da companhia no País?
O que a White Martins tem é a facilidade de aprovação para novos investimentos. E o investimento depende da quantidade de projetos. Se a gente tiver dez projetos, vamos investir nos dez. Estamos colocando mais de 200 MW de energia renovável em nosso portifólio. São investimentos fortes. Mas o importante é a quantidade de energia renovável que vai estar disponível para produção de gás verde, de energia limpa. A gente já está fazendo hidrogênio verde em Pernambuco. Se uma siderúrgica quiser hidrogênio verde, gerado através de energia renovável, vai ter. Esses projetos de hidrogênio verde são elevados, entre US$ 100 milhões e US$ 200 milhões.

O hidrogênio verde é o grande foco para o futuro da empresa. Por quê?
O evento hidrogênio verde é fantástico. Vai mudar toda a ordenação global da área de energia. A gente vive em um País que não se dá conta do poder energético que tem. Tem hidrelétrica, solar, eólica. A guerra [na Ucrânia] em si atrapalhou um pouco, mas todo mundo entendeu que alguma coisa precisa ser feita. Se o País e as empresas trabalharem bem, seremos protagonistas.

E o que é preciso para isso?
O setor público e o setor privado têm que andar juntos. Precisa ser um trilho único. Não dá para ir cada um para um lado. É importante que as legislações, as normativas sejam aprovadas, para que todo mundo saiba qual é o marco regulatório. Nós certificamos o nosso hidrogênio por meio de uma certificadora na Alemanha. O que precisa é ter ordem. Quais os incentivos e onde que o Estado vai ajudar. Precisamos de um projeto de País e não de governo.