28/05/2022 - 3:24
Quase dois anos e meio depois do início da pandemia de Covid-19, e em que a transmissibilidade de várias outras doenças infecciosas diminuiu de forma considerável, pesquisadores tentam agora entender como é que estão a surgir outras infecções fora da sua época normal ou até em sítios onde, normalmente, não se propagariam com facilidade, comportando-se de forma diferente e, até, inesperada.
A infecção provocada pelo vírus da varíola dos macacos é um exemplo: esta doença zoonótica – que se transmite de animais para humanos – é, em vários aspetos, semelhante à varíola, apesar de ser, à partida, menos transmissível e mortal (os especialistas explicam porque é que não se devemos utilizar o termo varíola dos macacos para nos referirmos a esta infecção).
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Este vírus foi identificado pela primeira vez em 1970, num macaco em cativeiro. No mesmo ano, registou-se um caso de infecção numa criança de 9 anos da República Democrática do Congo e, desde então, identificam-se casos maioritariamente no continente africano (em 2018, o vírus foi identificado em pessoas no Reino Unido. Em 2019 e 2021 também). Esta quinta-feira, a Direção-Geral da Saúde (DGS) confirmou que o número de casos de varíola dos macacos tinha aumentado para 58 em Portugal. No mundo, a Organização Mundial de Saúde confirmou que já há mais de 130 casos confirmados em cerca de 19 países, apesar de a organização afirmar que o surto ainda pode ser contido.
A incidência da gripe também aumentou consideravelmente nos últimos meses. Só entre os dias 2 e 8 deste mês, de acordo com o boletim de vigilância epidemiológica do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, verificou-se uma incidência de 34,6 por 100 mil habitantes no período mencionado, contrariamente a 8,0 registada na semana anterior.
No final de abril, já se contabilizavam perto de 200 casos de hepatite aguda em crianças, a maioria na Europa, e os cientistas estavam cada vez mais inclinados a apontar o dedo aos adenovírus e, paralelamente, aos confinamentos relacionados com a pandemia. Em cima da mesa estava a hipótese de infecção por uma estirpe de adenovírus denominada F41. Mas, mais do que a sua especial virulência, os investigadores sublinhavam o facto de as restrições impostas pela Covid-19 terem poupado as crianças à sua exposição durante os primeiros anos de vida, tornando-as mais suscetíveis.
Os adenovírus, que habitualmente provocam infecções respiratórias e gastroenterites comuns, podem ter apanhado pela frente sistemas imunitários que não se encontravam prontos a debelá-los. Resultado: chegaram ao fígado e desenvolveram hepatites.
Também o vírus sincicial respiratório, ou RSV, que, geralmente, é mais ativo no inverno, sendo o grande agente responsável por internamentos devido a bronquiolites ou pneumonias em crianças abaixo dos dois anos, desencadeou surtos nos mais novos no último verão e no início do outono, na Europa e também nos EUA.
Crianças e adultos mais suscetíveis. Mas há motivo para preocupação?
Helen Branswell, jornalista sobre doenças infecciosas e saúde global no Stat, site de notícias norte-americano ligado à saúde, escreve que “os vírus não estão diferentes, mas nós estamos”. Em primeiro lugar, devido às medidas implantadas para conter a Covid-19, o distanciamento e a utilização de máscaras, por exemplo, tivemos menos contacto com outros vírus e, por isso, temos muito menos imunidade recente adquirida a esses vírus. Isto faz com que possam ocorrer com mais frequência maiores e mais repentinos surtos de doenças, em locais e momentos que não são expectáveis, tal como já está a acontecer.
Ao mesmo site, Marion Koopmans, virologista e responsável pelo departamento de Viroscience do Erasmus Medical Center em Roterdão, Países Baixos, afirmou que é possível estarmos agora a enfrentar um período em que será difícil prever o comportamento das doenças que, até então, pensávamos que conhecíamos. Koopmans referiu ainda que esta mudança nos padrões de outras doenças infecciosas pode ser ainda mais notória naquelas normalmente disseminadas através das crianças.
Durante a pandemia, a maioria dos mais novos não frenquentou as creches e as aulas foram, essencialmente, online, o que fez com que a transmissão de doenças entre elas e para os adultos diminuísse. Já em relação aos bebés, Hubert Niesters, professor no University Medical Center, em Groningen, Países Baixos, explicou que aqueles que nasceram durante a pandemia podem ter muito menos anticorpos para vírus respiratórios comuns no sangue transmitidos pelas mães, que não foram tão expostas a vírus durante a gravidez.
Esta alteração nos anticorpos pode ser generalizada a adultos já que, muito provavelmente devido às restrições impostas para conter a Covid-19, não estão a ser produzidos anticorpos em níveis normais a infecções comuns, o que faz com que haja cada vez mais pessoas vulneráveis a novos surtos.
“Falamos de doenças endémicas que tinham um certo padrão de previsibilidade. E esse padrão era, em parte, sazonal, mas também era impulsionado pelo tamanho da população imune ou não imune. E a última parte, é claro, aumentou”, explicou Koopmans, relativamente ao facto de poder haver uma redução considerável do número de pessoas que têm níveis de anticorpos contra a gripe altos o suficiente para serem considerados protetores, depois de cerca de dois anos em que a sua transmissão foi baixa. O mesmo pode acontecer com outras doenças infecciosas e, por isso, a preparação para possíveis surtos devido à baixa imunidade adquirida nestes dois últimos anos terá de ser maior, dizem os investigadores.
O epidemiologista responsável pelo ramo do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA Meningitis and Vaccine Preventable Diseases, Thomas Clark, referiu ainda que, durante a pandemia, muitas crianças não tomaram vacinas contra outras doenças e que isso pode contribuir para o aparecimento de surtos. Mas esse não foi o único problema. “Houve várias crianças que não apanharam os vírus normais aos quais poderiam ter sido expostas”, garantiu, alertando para o facto de haver infecções que, quando são transmitidas em idade mais adulta, podem tornar-se mais graves.
Já David Heymann, que é professor de epidemiologia na School of Hygiene and Tropical Medicine de Londres e faz parte do programa da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as emergências sanitárias, disse que o vírus da varíola dos macacos pode ter estado presente em níveis muito baixos, latente, em algum lugar fora de África, no Reino Unido, por exemplo, e a sua atividade ter aumentado quando as viagens internacionais voltaram a ser permitidas.
Contudo, Petter Brodin, professor de imunologia pediátrica do Imperial College London, defendeu que não há motivo para alarme já que, em relação aos vírus em geral – também o varíola dos macacos – assim que várias pessoas forem infectadadas e for criada a imunidade de grupo, deixam de ser alarmantes.