29/12/2024 - 12:48
Há cerca de um século, as tarefas na cozinha eram especialmente incômodas e ineficientes. Até uma arquiteta vienense ter uma ideia inovadora, que perdura até hoje.”Se soubesse que iria falar sobre essa maldita cozinha pelo resto da minha vida, nunca a teria projetado”, afirmou a arquiteta austríaca Margarete Schütte-Lihotzky, então com cem anos de idade, em uma entrevista de 1998.
Mas a “maldita cozinha” entrou para a história da arquitetura e transformou a vida de donas de casas. E cerca de um século após sua criação, Schütte-Lihotzy é lembrada também pelo seu ativismo no movimento feminista e na resistência contra o nazismo.
O objetivo da arquiteta, que faleceu em 2000 aos 103 anos, era melhorar a vida das pessoas por meio da construção de moradias sociais com projetos funcionais. Sua invenção mais famosa foi a cozinha de Frankfurt, considerada o protótipo da cozinha embutida moderna.
Para compreender o potencial da invenção de Schütte-Lihotzy, é preciso voltar ao final do século 19, quando a Revolução Industrial promovia uma mudança profunda na sociedade. Os avanços tecnológicos e científicos ocorriam em velocidade acelerada, e a população aumentava rapidamente. Muitos migravam do campo para a cidade para trabalhar nas novas fábricas, mas as condições de vida nas cidades superlotadas eram marcadas pela falta de higiene, doenças e pobreza.
A jovem arquiteta Margarete Schütte-Lihotzky tinha um olhar especial para a a vida da classe trabalhadora. Em 1917, ela fez uma pesquisa para um concurso de arquitetura que premiaria o melhor projeto para um complexo habitacional popular, e visitou cortiços lotados para entender o que os moradores realmente precisavam.
Consciência social
O repensar da arquitetura na época, que se afastou do estilo decorativo em direção à Nova Objetividade, movimento surgido na década de 20 na Alemanha segundo o qual a forma deveria seguir a função, jogou a seu favor. A funcionalidade era o aspecto mais importante dessa nova maneira de construir, e Schütte-Lihotzky seguiu essa ideia em seus projetos.
Para ela, a arquitetura devia ser intimamente ligada à vida real e a todos os seus problemas sociais. Essa atitude tinha muito a ver como a sua origem.
Schütte-Lihotzky nasceu em 1897 em Viena numa família burguesa e intelectual. Sua infância foi marcada pela arte, cultura e política. Sua mãe tinha contatos na cena cultural vienense, mas também com grupos feministas e pacifistas, e era socialmente ativa.
Ainda jovem, Schütte-Lihotzky começou a se interessar por política e enxergava além de seus horizontes sociais. Ela tinha consciência de que muitos não estavam tão bem de vida quanto ela. Isso moldou sua compreensão de arte, design e arquitetura, e contribuiu para a sua vitória no concurso para o qual ela visitou bairros pobres em Viena.
A famosa cozinha
Ao contrário da recém-fundada Bauhaus, em Weimar, que se concentrava não somente na funcionalidade, mas também no design, Schütte-Lihotzky limitou seus projetos à pura função. Isso facilitou e barateou a produção e reprodução de suas criações, tanto de conjuntos habitacionais quanto de móveis.
Após a Primeira Guerra Mundial, a devastada Europa precisava urgentemente de moradias baratas. Novos conjuntos habitacionais, com moradias sociais para a crescente classe trabalhadora e para quem havia perdido sua casa na guerra, eram construídos em todos os lugares.
Em Frankfurt, o chefe do departamento de construção Ernst May apresentou o programa “Nova Frankfurt” para acabar com déficit habitacional da cidade em apenas dez anos. Ele chamou Schütte-Lihotzky, já conhecida por seu pragmatismo, para projetar uma cozinha adequada para o projeto. Essa cozinha deveria otimizar o uso do espaço limitado dos apartamentos e, ao mesmo tempo, melhorar o cotidiano dos moradores.
Para projetar a cozinha em 1926, Schütte-Lihotzky realizou uma série de pesquisas e cálculos, que incluíam, por exemplo, o número de passos que uma dona de casa precisava para ir de A na B, como ela se movimentava, onde ficavam os objetos necessários, e como cuidar das crianças enquanto ela trabalhava na cozinha.
O resultado foi um cômodo de cerca de 3,5 metros de comprimento por 2 metros de largura, com portas de correr de vidro que possibilitavam a visão para a sala de estar e com uma grande janela ao fundo. Nesse espaço, que era igual em todas as moradias novas construídas em Frankfurt, caberia a cozinha projetada por Schütte-Lihotzky.
Seus módulos individuais deveriam ser construídos industrialmente em larga escala: armários que iam do chão ao teto, uma bancada, uma pia com escorredor, gavetas para o lixo e recipientes de alumínio para guardar os principais ingredientes.
Uma campanha de propaganda foi lançada para afastar o ceticismo inicial em relação ao novo modelo de cozinha. O próprio May divulgava a invenção de Schütte-Lihotzky como “construída por uma mulher, para as mulheres”.
Transformação no trabalho doméstico
A cozinha de Frankfurt transformou o trabalho doméstico. Ou melhor, o trabalho das mulheres – e, na esteira do crescente feminismo na época, também atraiu críticas, que alegavam que a eficiência da nova invenção apenas prendia ainda mais as mulheres ao fogão.
Schütte-Lihotzky nunca se conformou com essas objeções, pois seu objetivo era trazer alívio às mulheres. Apesar das críticas, a cozinha de Frankfurt foi um sucesso. Pedidos chegaram de todo o mundo. Somente na França, 260 mil foram encomendadas.
Mesmo com o reconhecimento internacional, Schütte-Lihotzky se sentia incompreendida, pois seu maior interesse era melhorar a vida da classe trabalhadora. Isso quase a levou à desgraça na era nazista. Depois da anexação da Áustria pela Alemanha, ela, como comunista, lutou na clandestinidade, foi presa e escapou por pouco de ser executada.
Após a Segunda Guerra Mundial, Schütte-Lihotzky se engajou nos movimentos pacifista e feminista. Fez palestras, projetou moradias e jardins de infância na Alemanha Ocidental, na Rússia, em Cuba e na República Democrática Alemã (RDA), dando coragem e confiança a jovens arquitetas.
No entanto, seu legado mais famoso é até hoje a cozinha de Frankfurt. A ideia do espaço da cozinha multifuncional ainda é a mesma – agora com geladeiras e fogões que podem ser controlados por um aplicativo. Os estilos são os mais variados, mas o princípio por trás de toda cozinha moderna remete à ideia de Schütte-Lihotzky: tirar o máximo proveito do espaço com o mínimo de esforço.
Com a cozinha de Frankfurt, Schütte-Lihotzky criou a origem de todas as cozinhas embutidas.