07/07/2025 - 16:40
Auditoria interna aponta que políticos de ultradireita gastaram indevidamente milhões em fundos da UE. Críticos dizem que não se trata de apenas mais um escândalo, mas um sintoma de problemas estruturais profundos na UE.De doações a abrigos para cães a contratos questionáveis com empresas politicamente afiliadas, membros de ultradireita do Parlamento Europeu foram acusados de desviar fundos públicos para aliados pessoais ou ideológicos.
Uma auditoria parlamentar interna obtida por um grupo de jornalistas investigativos do programa Kontraste, da emissora pública alemã ARD, do jornal alemão Die Zeit, do francês Le Monde e do semanário austríaco Falter, revela que o agora extinto grupo de ultradireita Identidade e Democracia(ID) pode ter gasto pelo menos 4,3 milhões de euros (R$ 27,5 milhões) em fundos operacionais da UE, no que a própria administração do Parlamento Europeu chama de transações “injustificadas e potencialmente ilegais”.
Todos os anos, o Parlamento Europeu aloca fundos para as despesas administrativas e operacionais de cada grupo político que o compõe, geralmente entre 6 e 7 milhões de euros por ano. Esses fundos destinam-se a apoiar o trabalho legislativo, como o financiamento de pesquisas sobre políticas, a realização de eventos públicos relacionados à política da UE ou a produção de materiais de comunicação que expliquem suas atividades aos cidadãos. Cerca de 5% desse orçamento pode ser transferido para organizações externas, mas doações para instituições de caridade locais, esforços de campanhas nacionais ou grupos sem vínculo claro com o trabalho em nível da UE são explicitamente proibidas.
Uma falha mais profunda na UE
No entanto, a auditoria interna alega que cerca de 80 das despesas do grupo ID não atendem a esse requisito. Os gastos impróprios supostamente incluem contratos de serviços fictícios, procedimentos de licitação impróprios e doações a associações não relacionadas às atividades parlamentares e ligadas a figuras da ultradireita, informaram as publicações. A escala das descobertas sugere que isso foi mais do que descuido administrativo e levanta questões mais profundas sobre como as próprias estruturas da UE podem estar facilitando tais abusos.
Quais são as acusações?
O relatório diz, por exemplo, que a bancada do ID – que se dissolveu em meados de 2024, mas anteriormente incluía o francês Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen, a Alternativa para a Alemanha (AfD), a italiana Liga e o Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ) – doou mil euros (R$ 6,4 mil) para a presidente de uma associação cultural franco-russa chamada Teremok. A presidente em questão é esposa de Gregoire Eury, um conselheiro do RN para a região de Grand Est. Essa foi apenas uma das muitas conexões entre as associações que se beneficiaram das doações da ID e os funcionários de ultradireita dos partidos afiliados à ID.
Outras doações simplesmente refletiram as afinidades políticas mais amplas das autoridades eleitas pela ID. Na Alemanha, a SOS Leben (ou “SOS Vida”, em português), que é ligada à AfD, recebeu 3,5 mil euros para apoiar campanhas contra o aborto. Na França, mil euros foram para a associação católica identitária SOS Calvaires, para a restauração de uma paróquia. Cerca de 600 mil euros teriam sido destinados ao Zur Zeit, um jornal austríaco de ultradireita próximo ao FPÖ, com a ID pagando por publicidade um valor muito acima das taxas de mercado. O dinheiro também foi destinado a abrigos de animais e instituições de caridade – o que não é necessariamente ruim, mas também não é permitido segundo as regras da UE.
Empresas francesas próximas a Marine Le Pen estavam entre os maiores beneficiários. Duas empresas ligadas a seus aliados políticos de longa data teriam recebido mais de 3 milhões de euros no total. Uma delas já havia sido implicada em outro escândalo de financiamento da UE.
Regra inventada
O ex-secretário geral do extinto grupo ID, Philip Claeys, negou qualquer irregularidade e disse aos jornalistas que todos os pagamentos foram “devidamente faturados e justificados”. Claeys afirmou que um auditor externo e depois o Parlamento Europeu aprovaram os demonstrativos financeiros anuais do ID.
As doações do grupo foram aparentemente baseadas em uma regra chamada “Artigo 68”. O único problema, descobriram os jornalistas, é que o “Artigo 68” não existe. No entanto, ele apareceu em vários anos de contas publicadas, sem que chamasse a atenção. Quando contatados, os auditores belgas responsáveis não quiseram comentar.
“Este não é um incidente isolado”, disse Nick Aiossa, diretor da Transparência Internacional na UE. “Parece ser um esquema que funcionou durante muitos anos e envolveu muitas entidades além das fronteiras.” Sem os controles adequados, acrescenta ele, isso poderia facilmente acontecer novamente hoje.
Um histórico de vista grossa?
É verdade que essa está longe de ser a primeira vez que deputados europeus são pegos fazendo mau uso do dinheiro da UE. Em março, Marine Le Pen foi condenada na França a quatro anos de liberdade condicional e proibida de exercer cargos políticos após ser considerada culpada de desviar fundos parlamentares europeus por meio de um esquema de empregos falsos. Ela recorreu da decisão.
E não se trata apenas da ultradireita. Escândalos anteriores envolveram políticos de todo o espectro político. O chamado escândalo Qatargate, em 2023, expôs esquemas de suborno em troca de influência envolvendo atuais e ex-deputados do Parlamento Europeu.
E, em 2018, jornalistas entraram na justiça para obter mais informações sobre o que é conhecido como “subsídio para despesas gerais” (GEA, na sigla em inglês), um valor pago mensalmente aos eurodeputados para despesas como administração de um escritório e viagens. Os eurodeputados recebem mais de 4 mil euros por mês em GEA – o que totaliza mais de 40 milhões de euros por ano – mas não precisam fornecer informações sobre como gastam a verba. Na época, uma investigação jornalística encontrou mais de 200 do que foi chamado de “escritórios fantasmas”. Um tribunal negou as informações aos jornalistas, e a falta de transparência e responsabilidade em relação aos GEAs continua sendo um ponto sensível.
Sem reforma à vista?
Apesar dos repetidos escândalos, o Parlamento Europeu não conseguiu implementar reformas significativas, segundo Aiossa. Ele argumenta que a instituição causou danos duradouros a si mesma – primeiro por se recusar a responder de forma decisiva quando surgiram problemas e, depois, por continuar a tolerar sistemas fracos de responsabilidade e integridade. O resultado, adverte ele, é uma erosão constante da confiança do público.
No centro do problema está a estrutura das finanças parlamentares, de acordo com Aiossa. Em vez de gerenciar os orçamentos diretamente, o Parlamento Europeu delega essa responsabilidade aos próprios grupos políticos. Os grupos são obrigados a realizar auditorias anuais, mas elas são feitas de acordo com uma amostragem aleatória, o que dificulta a descoberta de uso indevido de fundos.
A responsabilidade sobre como o dinheiro do grupo partidário é gasto fica principalmente com a liderança do partido, especialmente sobre os diretores financeiros e o secretário-geral. Isso, de acordo com Aiossa, precisa mudar. “O Parlamento precisa adotar uma abordagem muito mais proativa na gestão desse dinheiro e não delegar essa responsabilidade apenas aos grupos políticos.”
O eurodeputado alemão Niclas Herbst, membro do partido conservador Democratas Cristãos, que preside a comissão de controle orçamentário do Parlamento, concorda. “Esse é o dinheiro dos contribuintes, e nós o queremos de volta”, diz. Ele planeja pressionar a Procuradoria Europeia (EPPO, na sigla em inglês) para que sejam feitas acusações criminais sobre esse último caso, para mostrar que deve haver responsabilidade.
Aiossa adverte que, a menos que o Parlamento Europeu aproveite este momento para aprovar reformas sérias, incluindo transparência nos subsídios, licitação competitiva para contratos e controle direto sobre os orçamentos dos grupos, a confiança do público no órgão continuará a diminuir.