30/06/2025 - 6:46
América Latina foi a primeira região a ser declarada livre de armas nucleares em 1967. Brasil e Argentina, no entanto, tiveram um papel ambíguo neste contexto.Em meio a conflitos que podem culminar com uma guerra nuclear, chama a atenção como a América Latina ficou alheia ao desenvolvimento desse tipo de armamento. A não proliferação nuclear no continente foi obra de esforços diplomáticos, que fizeram da região a primeira densamente povoada do mundo a ser declarada livre destas armas em 1967. Neste contexto, dois países tiveram, porém, um papel ambíguo: Brasil e Argentina, que defendiam avanços nessa área.
A ideia de proibir as armas nucleares na região existia desde os anos 1950. Dois fatores contribuíram para essa postura pacifista: a ausência de grandes disputas internas entre os países latino-americanos, e o fato de nenhuma nação ter desenvolvido estes armamentos até então, aponta Ryan Musto, diretor de fóruns e iniciativas de pesquisa do Instituto Global de Pesquisa (GRI).
Neste momento inicial, Musto conta que houve um interesse da Costa Rica e do Brasil, visando especialmente não desperdiçar recursos. O tema ganhou urgência com a crise dos mísseis de Cuba em 1962, um dos momentos mais tensos da Guerra Fria, quando o mundo ficou próximo de uma escalada nuclear entre Estados Unidos e União Soviética. Foi quando os defensores da não proliferação na região ganharam grande impulso.
“A grande ideia de desnuclearização era brasileira, e foi impulsionada pelo país no contexto da Crise dos Mísseis”, afirma o diretor técnico da Associação Brasileira para Desenvolvimento de Atividades Nucleares (ABDAM), Leonam Guimarães.
Após o golpe de 1964, que instaurou a ditadura militar, divergências passaram a dominar a postura brasileira com relação às propostas de não proliferação. O país alegava que certos termos das negociações poderiam violar sua soberania. O Brasil era, por exemplo, a favor da permissão para testes para fins pacíficos, algo defendido para uso na engenharia por certos setores na época, aponta Guimarães.
“Foi então que veio o México, buscando impulsionar o seu nome internacional”, conta Musto. O vácuo deixado pela postura brasileira foi ocupado pelo governo mexicano, que atuou ativamente para promover os termos do que viria a ser o Tratado de Tlatelolco, assinado na Cidade do México em 1967.
Como resultado dos esforços, o então secretário das Relações Exteriores do país, Alfonso García Robles, foi laureado com o Nobel da Paz em 1982 “por seu trabalho pelo desarmamento e as zonas livres de armas nucleares”.
Corrida com a Argentina e oposição
Uma das grandes justificativas para a hesitação brasileira foi justamente seu principal vizinho. “Brasil e Argentina queriam manter suas opções nucleares em aberto por conta um do outro”, aponta Musto. Durante o governo de Juan Domingo Perón, que comandou a Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974, o país investiu numa série de desenvolvimentos nucleares.
Havia a ideia de que garantir a autonomia energética do país era essencial para o processo de industrialização por substituição de importações, enquanto o governo peronista da época cogitava uma possível Terceira Guerra Mundial, explica Nevia Vera, integrante do Centro de Estudos Interdisciplinares sobre Questões Internacionais e Locais (CEIPIL) da Província de Buenos Aires.
Guimarães lembra que, a partir deste momento, se “estabeleceu uma corrida entre os dois países”, e que os estágios tecnológicos que a Argentina estabeleceu para a energia nuclear foram grandes motivadores para o complexo de Angra, no Brasil.
Outro país que não queria ter suas operações restringidas na região era a França. Sob o comando de Charles De Gaulle (1959-1969), Paris adotou uma postura fortemente nuclearizada, e resistiu que seus territórios ultramarinos no continente americano fizessem parte dos esforços de não proliferação.
Ratificação após transições democráticas
Brasil e Argentina se mantiveram reticentes em adotar plenamente o tratado. Com uma postura ambígua, em que cumpriram com grande parte das determinações, mas que deixou margem para novos desenvolvimentos, os dois países somente adotaram de maneira plena a postura da não proliferação após suas transições democráticas. Em 1994, ambos os países ratificaram plenamente Tlatelolco.
Na visão de Vera, o tratado não afetou diretamente o desenvolvimento nuclear da Argentina, embora tenha causado “várias dores de cabeça diplomáticas”, pois o país foi pressionado por grandes potências, especialmente os Estados Unidos, e gerou desconfiança global.
Neste contexto, foi frequente a acusação de que a Argentina tivesse fins bélicos em seus desenvolvimentos nucleares, o que Vera rechaça. “Na verdade, a confusão pode advir da compreensão que os militares tinham da segurança na época, que diferia daquela das grandes potências”, aponta.
“Para governos desenvolvimentistas e alguns militares, a segurança estava frequentemente ligada à autonomia energética, como foi dito, e a energia nuclear era essencial para garantir isso, mas apenas em seu aspecto pacífico”, afirma a especialista.
Abrir mão em troca do quê?
Um questionamento que os planos voluntários de desarmamento nucleares sempre sofreram foi sobre as contrapartidas por abrir mão da capacidade bélica. “Os tratados de não proliferação são assimétricos, e geram resistência entre os que não possuem os armamentos para sua assinatura”, afirma Guimarães.
Naquele momento, o mundo passava por algumas iniciativas que visavam contrapartidas para os países que se abstivessem de seus desenvolvimentos nucleares belicistas. Em 1953, o presidente americano Dwight Eisenhower lançou o programa conhecido como Átomos para a Paz, que visava cooperação para o uso nuclear com fins pacíficos para reduzir a ameaça do desenvolvimento de armas atômicas.
Pouco depois, em 1957, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) foi criada, e um ano após a assinatura de Tlatelolco, em 1968, o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) foi firmado, ainda que com inúmeras ausências importantes. O TNP reforçou os princípios de colaboração para fins pacíficos com quem abdicasse das armas.
Foi neste contexto, em 1975, que a Alemanha Ocidental firmou seu acordo com o Brasil, que previa a transferência de tecnologia alemã para o desenvolvimento do programa nuclear brasileiro, com a construção de oito usinas. Apenas uma saiu do papel, Angra 2, que entrou em operação em 2001.
O desenvolvimento de programas de energia nuclear na região acabou sendo limitado, e, hoje, além do Brasil, apenas Argentina e México usam esta fonte em sua matriz energética.
Pouca ação e “precedente crítico”
Em uma região com poucas disputas, Tlatelolco costuma ser referenciado pelo legado que gerou, abrindo espaços para tratados semelhantes pelo mundo, e pelo seu ineditismo. Com sede na Cidade do México, o Organismo para a Proscrição das Armas Nucleares na América Latina e no Caribe (Opanal), criado para resguardar as resoluções do tratado, sempre contou com papel pouco destacado.
No entanto, em 1982, um “precedente crítico” rompeu com este cenário. Durante a Guerra das Malvinas, a escalada das disputas entre Argentina e Reino Unido envolveram potenciais desenvolvimentos bélicos nucleares por parte dos britânicos. Musto diz que “Tlatelolco foi testado” neste momento.
A Argentina acusou o Reino Unido de violar a zona livre de armas nucleares ao implantar militarmente submarinos com propulsão nuclear na área demarcada e ao entrar região com navios que transportavam armas nucleares. A alegação argentina é de que Londres planejava usar o material na guerra. O caso se trata da primeira acusação de violação militarista numa região desnuclearizada.
O tema chegou ao Opanal, que, em 1983, adotou a Resolução 170, que “expressa a sua preocupação com o fato de submarinos com propulsão nuclear terem sido utilizados em ações bélicas em áreas abrangidas pela zona geográfica definida pelo Tratado”.
Musto reconhece que a capacidade de sanções seria limitada se houvesse uma violação britânica dos termos, mas crê que o caso mostra como os desenvolvimentos podem ocorrer em outras partes do mundo.