20/09/2022 - 10:28
O Brasil é uma pátria de chuteiras, como escreveu Nelson Rodrigues, e durante as campanhas eleitorais a política costuma se aproximar dos boleiros. Isso ficou claro na semana passada, quando Raí e Vanderlei Luxemburgo, que atuaram pela seleção brasileira como jogador e técnico, divulgaram vídeos de apoio à candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Palácio do Planalto.
Raí disse que votará em Lula porque é “antirracista e antifascista” e por ser “contra as armas”, e fez um apelo aos eleitores indecisos e aos que apoiam Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) para que votem no petista no primeiro turno. “Eu voto em Lula convicto. Se você não pensa como eu, vote em Lula por um país mais humano, por mais democracia, por paz. […] [No] primeiro turno, para que o mundo não tenha dúvidas de quem realmente somos. […] Ciro, Tebet, vem com a gente.”
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Luxemburgo chamou o presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) de “sociopata” e também pediu votos em Lula no primeiro turno. “Este jogo está por terminar. Este jogo que vai definir o futuro do nosso Brasil. Que pode ser definido no primeiro tempo do jogo, não precisa do segundo tempo. Não temos que dar chance ao adversário, nenhuma.”
Outros ex-atletas, como Juninho Pernambucano e Casagrande, já gravaram vídeos em apoio à campanha de Lula.
Há também boleiros que preferem Bolsonaro. O ex-goleiro Marcos, estrela do Palmeiras que atuou pela seleção brasileira, é um deles. Em maio, postou no Instagram uma foto carregando a bandeira brasileira após a conquista do pentacampeonato pela seleção, acompanhada do slogan bolsonarista “Jamais será vermelha”. Em 2020, ele já havia postado a foto de um tapete com os dizeres “Se veio aqui falar mal do Bolsonaro, desculpa, mas veio no lugar errado” e a imagem de um revólver.
Outro jogador bolsonarista é Felipe Melo, do Fluminense, que já apareceu em diversas fotos ao lado do presidente. Em janeiro, questionado numa entrevista coletiva sobre o apoio a Bolsonaro, ele defendeu que sua posição política não deveria ser motivo de afastamento do seu clube de torcedores críticos ao presidente.
Lucas Moura, revelado pelo São Paulo Futebol Clube e hoje no inglês Tottenham, já havia apoiado Bolsonaro na eleição passada, e declarou em 11 de setembro que votará pela reeleição. “Sou um cara conservador, de direita, que defende os princípios cristãos, família… E acho que não tem como fugir. Primeiro que não vejo nenhum candidato ideal, estamos longe disso, mas não temos como negar que Bolsonaro é um cara que mais se aproxima do que acredito, da ideologia que eu acho que é correta para o nosso país”, afirmou em entrevista ao podcast Cara a Tapa.
Futebol e política se misturam
A interface entre futebol e política é antiga no país e o engajamento de boleiros nas eleições deste ano não é uma exceção, afirma à DW o sociólogo Euclides de Freitas Couto, autor do livro Da ditadura à ditadura – uma história política do futebol brasileiro, e professor da Universidade Federal de São João del-Rei.
Ele lembra que essa mistura era institucionalizada no início da ditadura militar, quando a Presidência da República indicava um representante para o comando da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), mais tarde rebatizada Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Nos anos 80, durante o processo de redemocratização, jogadores de futebol também tiveram participação importante nos comícios da campanha Diretas Já, como Sócrates e Wladimir, que atuavam no movimento Democracia Corinthiana.
“Como o futebol faz parte do cotidiano, faz parte da economia das emoções dos brasileiros, nada mais natural que jogadores, dirigentes e técnicos se aproveitem desse espaço midiático que o futebol promove para também pautar suas filiações políticas”, diz Couto.
Ele avalia que o momento atual, de “polarização política”, estimula alguns boleiros, especialmente já aposentados, a se posicionarem: “Embora a gente não conheça a força dessa estratégia, é uma estratégia legítima do ponto de vista de uma corrente democrática.”
Jogadores da ativa receiam se posicionar
Couto afirma que a tomada de posição por jogadores da ativa é menos comum, pois os empresários de muitos atletas os orientam a ser tão “apolíticos” quanto possível em seus posicionamentos públicos.
Ele cita a experiência do movimento Bom Senso F.C., que existiu de 2013 a 2016 e lutava por melhores condições para os jogadores. O grupo encontrou dificuldades para superar a blindagem dos empresários e ampliar o número de integrantes, e era liderado majoritariamente por atletas em fim de carreira e, portanto, menos expostos a riscos por atuarem politicamente.
O historiador Flávio de Campos, organizador do livro Futebol objeto das ciências humanas e professor da Universidade de São Paulo, também identifica esse receio entre os atletas. Integrante do grupo de trabalho sobre esportes da campanha de Lula, ele conta que alguns atletas procurados para manifestar apoio ao petista “não se dispuseram a gravar por medo de represália, de perder espaço, contrato de trabalho”.
Campos avalia que há também atletas bolsonaristas não se posicionando mais claramente durante esta campanha porque há um “prognóstico de derrota” do presidente e preferem evitar “não ficar mal” com o próximo governo, no caso de vitória de Lula.
Neste ano, Copa só depois da campanha
Há uma particularidade na campanha deste ano que reduziu o potencial de uso político do futebol: as Copas do Mundo costumam ocorrer em junho e julho, a menos de três meses do primeiro turno do pleito no Brasil. Em 2022, pela primeira vez da história, a Copa será realizada em novembro e dezembro: o torneio ocorrerá no Catar, em região desértica onde as temperaturas no meio do ano superam frequentemente os 40°C.
Por isso, a campanha eleitoral não terá imagens de candidatos assistindo a jogos da seleção, torcedores apoiando ou vaiando políticos em estádios da Copa ou o presidente da República eventualmente tentando capitalizar um desempenho positivo do país no torneio.
Em 2014, na Copa do Mundo no Brasil, os principais candidatos divulgaram fotos vestindo a camisa amarela da seleção e assistindo aos jogos em casa ou nos estádios. O torneio também provocou um momento de constrangimento à então presidente Dilma Rousseff, que foi xingada na abertura da Copa após a execução do hino nacional.
Em 2018, o então candidato do Psol ao Planalto, Guilherme Boulos, tentou disputar o significado político do uso da camisa da seleção, hoje identificada com a direita e a extrema direita, e a vestiu enquanto assistia à primeira partida do Brasil na Copa, contra a Suíça, num assentamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) na zona sul de São Paulo.
A simbologia da camisa da seleção
A iniciativa de Boulos foi um ato isolado, e hoje a camisa da seleção é inequivocamente vinculada à direita e à extrema direita, avalia Couto. Ele diz que a apropriação desse símbolo nacional por esse campo político começou na segunda onda das Jornadas de Junho, em 2013, quando grupos anti-PT e de oposição ao governo Dilma saíram às ruas com a vestimenta.
O objetivo teria sido transmitir a mensagem de que aquele movimento representaria o país, e não apenas uma parte de sua população: “Ao apropriar-se desse símbolo da nação, ‘nós’ falamos em nome da nação que não queremos mais esse tipo de governo”, explica.
Na véspera do segundo turno de 2014, o então candidato do PSDB ao Planalto, Aécio Neves, buscou se aproveitar dessa identificação e pediu aos seus eleitores que vestissem as cores da bandeira do Brasil na véspera do pleito. Aécio perdeu a eleição, Dilma sofreu impeachment em 2016, e a camisa amarela foi então incorporada à estética bolsonarista, estratégia reforçada pelo bordão “Nossa camisa jamais será vermelha”, em referência à cor do PT.
“Bolsonaro segue a lógica dos populistas autoritários. […] Ele cooptou a ideia de nacionalidade, e nada mais próximo dessa ideia do que o futebol. Um dos pilares da nossa identidade nacional está justamente no futebol e na seleção brasileira”, diz Couto.
Bolsonaro vestiu camisas de mais de 70 times
Além da apropriação simbólica da camisa amarela da seleção, o presidente tenta por outras formas aproveitar a potencialidade político-eleitoral do futebol. Em dezembro de 2018, logo após vencer a eleição, Bolsonaro – que diz ser palmeirense – acompanhou no estádio Allianz Parque a partida na qual o time venceu o Campeonato Brasileiro. Ao fim do jogo, ele foi ao gramado entregar as medalhas aos jogadores e posou erguendo a taça.
Ao longo de seu governo, Bolsonaro foi também frequentemente a estádios. Neste 7 de Setembro, após comandar um ato político-eleitoral em Copacabana, ele assistiu ao jogo do Flamengo contra o time argentino Vélez Sarsfield, pela Copa Libertadores da América, no estádio do Maracanã, onde recebeu um misto de vaias e aplausos.
Um comportamento particular do presidente nesta seara é vestir a camisa de muitos times – de dezenas deles. Até junho de 2021, Bolsonaro havia posado para fotos usando a camisa de 72 times brasileiros diferentes, segundo um levantamento do historiador Victor Figols, da Universidade Federal do Paraná.
Essa é uma estratégia com efeitos contraditórios, diz Couto. Por um lado, é possível que ele angarie apoio de parte das torcidas desses times. Por outro, deixa alguns torcedores contrariados, pois sabem que o presidente torce para outro time. “Passa a impressão que ele não é autêntico. O futebol é uma das poucas identidades de longa duração […] As pessoas em geral não mudam de time. O clube, especialmente no âmbito masculino, é uma herança familiar dada por uma figura masculina. Então o sentimento de honra a um clube de futebol está diretamente em oposição ao uso que o Bolsonaro faz, que é usar a camisa de todos os clubes.”
Ele avalia que Lula, que é corinthiano, tem uma postura mais compatível com a fidelidade clubística, pois não costuma usar camisas de outros times importantes. Quando o faz, “é de um clube de menor expressividade”.