26/09/2025 - 5:59
Ao londo de três décadas, quase 200 armas nucleares foram detonadas em testes na Polinésia Francesa. Áreas do arquipélago do Pacífico Sul continuam contaminadas até hoje, afetando a saúde de habitantes locais.”Durante 30 anos, fomos cobaias da França”, afirma Hinamoeura Morgant-Cross, uma jovem deputada da Polinésia Francesa – arquipélago do Pacífico Sul que é território ultramarino francês.
Famoso por suas praias de areia branca, palmeiras e água azul-turquesa, o local é frequentemente romantizado como um paraíso. Mas por trás dessa imagem idílica há um legado doloroso: décadas de testes nucleares e consequências duradouras.
Entre 1966 e 1996, as forças armadas francesas detonaram 193 bombas nucleares nos remotos atóis de Mururoa e Fangataufa. Esses testes foram realizados em Ma’ohi Nui, como o território é conhecido por seus habitantes originários. A primeira explosão, com o codinome Aldebaran, ocorreu em 2 de julho de 1966. Ela marcou o início de um longo capítulo que deixaria cicatrizes profundas na terra e em seu povo.
Em maio, Morgant-Cross viajou mais de 15 mil quilômetros até Berlim para falar em um evento da organização Médicos Internacionais para a Prevenção da Guerra Nuclear (IPPNW, na sigla em inglês). Na ocasião, ela deu um testemunho comovente sobre as consequências a longo prazo do programa de testes nucleares da França: taxas desproporcionalmente altas de câncer, crianças nascidas com deformidades e contaminação contínua da água e do solo da região.
“Então, eles realmente envenenaram o oceano onde encontrávamos toda a nossa comida”, diz Morgant-Cross, que também discursou na Organização das Nações Unidas, em Nova York. “Fomos envenenados pela grandeza da França, para que a França fosse um Estado com armas nucleares.”
O mito da “bomba limpa”
O governo francês da época deu garantias falsas aos habitantes das ilhas sobre os perigos dos testes nucleares.
O então presidente Charles de Gaulle descreveu a bomba atômica francesa como “verde e muito limpa”, sugerindo que era mais segura ou mais ecológica do que as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Na realidade, nuvens radioativas se espalharam por vastas áreas do Pacífico Sul e chegaram até mesmo à ilha principal do Taiti, a mais de 1.000 quilômetros do local do teste. Muitas vezes, os moradores das ilhas próximas não foram informados nem evacuados.
Nenhuma desculpa da França
A França só encerrou seu programa de testes nucleares em 1996, após intensos protestos nacionais e internacionais. Apesar da interrupção, o governo francês nunca se desculpou formalmente pelos danos causados aos seus territórios ultramarinos.
Durante uma visita à Polinésia Francesa em 2021, o presidente Emmanuel Macron reconheceu o papel da França: “A culpa reside no fato de termos realizado esses testes”.
“Não teríamos realizado esses experimentos em Creuse ou na Bretanha [regiões da França continental]”, disse ele.
As Nações Unidas e várias ONGs celebram em 26 de setembro o Dia Internacional pela Eliminação Total das Armas Nucleares, desde 2014. A data é um lembrete solene da responsabilidade contínua dos Estados com armas nucleares.
No entanto, o sofrimento das vítimas dos testes nucleares corre o risco de ser esquecido. Em resposta, novas gerações das antigas zonas de testes recusam-se a aceitar o silêncio dos detentores do poder e se mobilizam internacionalmente.
A parlamentar Hinamoeura Morgant-Cross é uma das pessoas que está nessa frente de ação coordenada. Durante sua visita a Berlim, ela compartilhou o doloroso legado de sua família: sua avó tinha 30 anos quando os testes nucleares começaram e mais tarde desenvolveu câncer de tireoide, assim como sua mãe e sua tia.
Nascida em 1988, Morgant-Cross revelou que ela e sua irmã também desenvolveram a doença, ressaltando o impacto a longo prazo da exposição à radiação.
Herança maldita
Especialistas corroboram o risco prolongado de câncer nesses casos. A exposição à radiação ionizante pode causar mutações genéticas, que podem ser herdadas pelas gerações seguintes.
“A natureza insidiosa da radiação ionizante reside em sua capacidade de afetar pessoas ao longo de gerações”, afirma a especialista em armas nucleares Jana Baldus, da European Leadership Network (ELN). “Ela aumenta significativamente o risco de vários tipos de câncer, particularmente linfoma e leucemia.”
Outra consequência dos testes nucleares são os danos às funções reprodutivas.
“Mulheres expostas à radiação durante os testes deram à luz crianças com defeitos congênitos e sofreram abortos espontâneos”, diz Baldus à DW.
“Esses efeitos podem ser transmitidos através das gerações, levando potencialmente à infertilidade nas mulheres.”
Para Hinamoeura Morgant-Cross, os múltiplos diagnósticos de câncer em sua família foram um empurrão para que entrasse na política.
Agora, ela está pedindo à França — o Estado responsável pelos testes nucleares — que forneça mais apoio aos seus concidadãos.
“Não temos os cuidados médicos que deveríamos ter, que merecemos, porque estamos 30 anos atrasados em termos de medicamentos. Não temos tecnologia como exames médicos”, diz. “Isso realmente me motivou a entrar na política e exigir um hospital melhor, um tratamento melhor.”
Apenas uma pequena fração das pessoas afetadas tem meios para viajar a Paris para tratamento médico, deixando muitas sem acesso a cuidados adequados.
Batalha para indenização
Em 2010, o governo francês aprovou uma lei para indenizar as vítimas dos testes nucleares. No entanto, cada caso é avaliado individualmente, e os requerentes devem demonstrar uma ligação direta entre sua doença e os testes nucleares. O ônus da prova é um desafio extra.
“As vítimas devem provar que estavam fisicamente presentes no local exato quando os testes ocorreram — uma tarefa quase impossível décadas depois”, explica a especialista Jana Baldus.
Além disso, a indenização é limitada a uma lista restrita de doenças oficialmente reconhecidas. De acordo com a Campanha Internacional para Abolir as Armas Nucleares (Ican, na sigla em inglês) apenas 417 residentes da Polinésia Francesa receberam indenização entre 2010 e julho de 2024.
Para Hinamoeura Morgant-Cross, a luta não se resume a garantir apoio prático, mas também acesso à educação.
Em sua terra natal, uma narrativa persistente ainda retrata os testes nucleares como um empreendimento limpo que trouxe prosperidade.
“Durante décadas, tivemos fotos do cogumelo nuclear em todas as salas de estar do povo taitiano porque estávamos orgulhosos de que os franceses tivessem decidido nos escolher”, lembra. Sua missão agora é desmantelar essa “mentalidade colonial” e lançar luz sobre as verdadeiras consequências dos testes.
O futuro dos testes nucleares
A França não foi a única a realizar testes nucleares amplos. A União Soviética, os Estados Unidos, o Reuno Unido e a China também realizaram detonações em grande escala.
No total, ocorreram mais de 2.000 explosões nucleares desde 1945. A precipitação radioativa resultante não só contaminou os locais exatos desses testes, como também contribuiu para níveis elevados de radiação em todo o mundo.
Os testes nucleares foram interrompidos principalmente por meio de suspensões temporárias e negociações internacionais em torno do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT).
Nos últimos anos, a Coreia do Norte tem sido o único país a realizar esses testes. No entanto, em meio a uma escalada de tensões geopolíticas, especialistas alertam para a possibilidade de uma retomada desse perigo.