Foi uma cena memorável para uma eleição marcada por agressões verbais, bolinhas de papel, fitas crepes e bexigas d´água. Ao descer da van que a trouxerá do hotel Plaza São Rafael, onde tomara café da manhã com 200 aliados políticos, Dilma Vana Rousseff, 62 anos, foi recebida com uma chuva de pétalas de rosas e balões cor de rosa em frente ao colégio Santos Dumont, em Porto Alegre, onde votou no domingo 31 às 9h10. O rosto cansado, fruto de uma maratona de 118 dias de campanha, se transformou quando ela abriu um largo sorriso. Lá estavam Adair Maria, conhecida como Dadá, Sulivam de Moura, Haroldo Brito, Ana Costa e outros 11 militantes que migraram do PDT para o PT e que acompanham a trajetória de Dilma Rousseff desde a época em que ela passou a morar em Porto Alegre com o advogado Carlos Franklin Paixão Araújo, hoje seu ex-marido. Não houve tempo para cumprimentá-los. 

 

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Reta final: no segundo turno, ela consolidou sua liderança e venceu com folga

 

Uma avalanche de jornalistas, cinegrafistas e fotógrafos avançou, começando um grande tumulto. Escoltada por seguranças e acompanhada de caciques políticos do Rio Grande do Sul, como o governador eleito Tarso Genro e os ex-governadores Olívio Dutra e Alceu Collares, Dilma foi levada pela multidão para último ato de uma campanha desgastante.

 

Cerca de 11 horas depois, exatamente às 20h14, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Ricardo Lewandowsky, ligou para informar que Dilma já era matematicamente a primeira mulher a se eleger presidente do Brasil. Em uma ampla casa no Lago Sul, uma das regiões mais nobres de Brasília, Dilma comemorou com uma frase que mostra bem o desgaste de uma campanha marcada por discussões religiosas, aborto, privatizações e acusações de corrupção. “Acabou”, disse ela, em tom de alívio. 

 

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Uma chuva de pétalas de rosas recebe Dilma Rousseff em frente ao colégio Santos Dumont, em Porto Alegre, onde votou.

Esse foi o último ato de uma campanha agressiva e desgastante

 

Não chorou. Ficou anestesiada e demorou para absorver a notícia: ela era a presidente de 190 milhões de brasileiros. Logo em seguida, a euforia tomou conta do ambiente. A presidente eleita foi abraçada de forma efusiva pelo grupo presente no quartel-general. 

 

Estavam lá Fernando Pimentel, o deputado federal Antônio Palocci, o presidente do PT, José Eduardo Dutra, e o secretário geral do partido e deputado federal, José Eduardo Cardozo. Estes três últimos faziam parte da linha de frente da campanha, chamados de “os três mosqueteiros” pela mídia e de forma carinhosa de “os três porquinhos” por Dilma, por estarem acima do peso. O grupo acompanhou a apuração degustando um vinho tinto levado, como de costume, por Palocci.

 

Da mansão no Lago Sul, Dilma saiu para o seu primeiro ato como presidente eleita. Dirigiu-se ao Hotel Naoum, local escolhido para o primeiro pronunciamento, onde um batalhão de aliados políticos e da imprensa nacional e internacional a esperava. A campanha reservou a suíte presidencial para Dilma, que não chegou a usá-la, e a cobertura, no 18º andar, para a concentração dos aliados. 

 

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Na porta de casa, dentro de um Toyota Corolla, parou e falou rapidamente para um grupo de jornalistas. “Serei a presidente de todos os brasileiros. Honrarei a confiança depositada em mim”, disse rapidamente de forma serena, antes que o carro saísse em disparada pelas ruas de Brasília. 

 

O que mostrou nesta rápida cena foi mais importante do que falou. Ao seu lado estava Palocci, que fez parte da coordenação da campanha desde o início e deve ser reabilitado em seu governo, após escândalo que o tirou do governo de Lula. Frequentemente usando roupas vermelhas, que fazem referência ao PT, Dilma vestia um terno feminino branco, cor que simboliza a paz. 

 

Poucos minutos depois, faria um discurso de conciliação. “Dirijo-me também aos partidos de oposição e aos setores da sociedade que não estiveram conosco nesta caminhada. Estendo minha mão a eles. De minha parte, não haverá discriminação, privilégios ou compadrio”, disse ela em seu primeiro pronunciamento como presidente eleita, durante exatos 25 minutos. 

 

No meio do discurso, recebeu um bilhete de Palocci. “Serra já telefonou”, dizia. Dilma olhou, mas não comentou. Já tinha ficado duas horas esperando que o adversário reconhecesse a derrota. A conciliação com os adversários não será tarefa fácil. 

 

Muitas feridas foram abertas nesta campanha, que é descrita como a mais agressiva desde a primeira eleição direta para presidente em 1989, depois da redemocratização do País. O embate entre Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva chegou a temperaturas só igualadas no pleito deste ano. 

 

Mas a trajetória de Dilma, até chegar o momento de ser eleita a primeira mulher presidente do Brasil, diz muito sobre sua personalidade e sua habilidade de curar feridas profundas do passado. Na década de 1960, lutou contra o regime militar em organizações como Política Operária (Polop), Comando de Libertação Nacional (Colina), Vanguarda Popular Revolucionária (VAR) e Vanguarda Popular Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). 

 

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Em sua primeira aparição como presidente eleita (foto à esq.), Dilma transmitiu várias mensagens. Ela vestia um terno feminino branco e tinha o ex-ministro Antônio Palocci ao seu lado

 

Foi presa no começo dos anos 70 e brutalmente torturada. Essas marcas indeléveis ajudaram não só a formar seu caráter como o de toda uma geração que lutou ao seu lado contra a falta de liberdade dos anos de chumbo na época dos militares. Era preciso ter disciplina, organização, tática e sigilo. 

 

Essas quatro palavras refletem de forma precisa como foi organizada a campanha de Dilma, bem como o seu comportamento durante os mais de 118 dias em que esteve na estrada para conquistar o voto dos brasileiros. “Nunca antes na história do País” houve uma campanha tão organizada e com ares presidenciais como a de Dilma Rousseff.

 

Não há também registro de uma candidatura tão blindada quanto a da candidata do PT. Sua equipe tinha 100 pessoas, sem contar as mais de 180 que trabalharam com João Santana, o marqueteiro. Só os assessores diretos tinham contato com Dilma. 

 

A agenda era divulgada sempre em cima da hora. Ninguém fora de seu circulo viajava a bordo do moderno Cessna Citation Sovereign, luxuoso jatinho de nove lugares, autonomia de voo de 5,2 mil quilômetros e capacidade de pouso em pistas curtas. 

 

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A festa: eleitores se reúnem em São Paulo e no Rio de Janeiro para comemorar a vitória

 

A equipe formada por muitos egressos do governo adotou esquema parecido com o da Presidência. Um time de assessores chegava às cidades por onde ela passava com um dia de antecedência para levantar informações sobre deslocamentos e as pessoas com quem Dilma iria se encontrar. 

 

Esses “precursores políticos” tomavam todas as providências para evitar constrangimentos. Dilma teve pouco contato direto com o povo. Nos comícios, sempre havia uma barreira entre ela e os eleitores. A partir de meados de setembro, teve de usar uma bota ortopédica, depois de um torcer o pé numa esteira de um hotel de luxo em São Paulo, o que limitou seus movimentos e deslocamentos. 

 

Antes da votação de 3 de outubro, visitou apenas quatro municípios no Nordeste, onde tinha ampla vantagem. Não colocou os pés no Norte, outra região em que ganhou com folga. A estratégia foi concentrar forças no Sul e Sudeste, locais em que o PT encontrava dificuldades. 

 

O quartel-general da campanha ficou em Brasília, para onde ela sempre voltava após os compromissos políticos. Depois, quando o segundo turno virou realidade, teve de rever essa estratégia. Foi até o Pará, no Norte do País, e chegou a visitar até três Estados em um só dia, como na terça-feira 26, quando esteve em Fortaleza, no Ceará; Caruaru, em Pernambuco; e Vitória da Conquista, na Bahia. 

 

As informações de sua agenda, no entanto, eram liberadas a conta-gotas e todos do seu círculo estavam proibidos de dar entrevista. “Se eu falar, perco o emprego”, disse uma pessoa próxima a Dilma, em frente ao colégio Santos Dumont, em Porto Alegre, onde ela votou. 

 

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Outros assessores, quando questionados sobre a agenda de Dilma, também se furtavam a prestar informações. Diziam não saber ou relatavam que a agenda não estava concluída. Essa tática de despistar, camuflar e dissimular era uma atitude típica de quem militava na clandestinidade do regime militar e precisava viver fugindo do cerco policial. 

 

O ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, a quem Dilma sucedeu, chegou a fazer uma plástica para alterar o seu rosto e não ser reconhecido quando retornou ao Brasil. Quando foi presa, em janeiro de 1970, Dilma tinha um título de eleitor e uma carteira de estudante em nome de Marina Guimarães Garcia Castro e um RG em nome de Maria Lúcia Santos. “A prisão é uma coisa em que a gente se encontra com os nossos limites. 

 

É isso que às vezes é muito duro. Nos depoimentos, a gente mentia feito doido”, declarou a ex-ministra em uma entrevista em 2003, uma das poucas em que dá detalhes sobre o período em que passou na cadeia. 

 

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O DIA D: antes de votar, Dilma tomou café da manhã com aliados, como Alceu Collares (abaixo)

 

Não há nenhum demérito na frase de Dilma. Era preciso mentir para salvar outros companheiros. “Me orgulho de ter mentido, mentir na tortura não é fácil. Diante da tortura, quem tem dignidade fala mentira”, disse ela, em depoimento ao Senado, em 2008.

 

Séria, formal e disciplinada, Dilma aparece poucas vezes sorrindo quando as câmeras de tevê não estão ligadas. No debate da Record, na segunda-feira 25, a seis dias da eleição do segundo turno, sua tensão era nítida. Entrou no estúdio da emissora em São Paulo e não cumprimentou o seu rival. 

 

Durante uma hora e meia de um dos debates mais agressivos desta campanha, não alterou sua expressão, tornando-se um alvo difícil para os fotógrafos. Olhou sempre em direção à câmera, mesmo quando não era sua vez de falar. Não sorriu em nenhuma ocasião. Nos intervalos, conversava longamente com o marqueteiro João Santana. 

 

José Eduardo Dutra, presidente do PT, e o deputado federal Antônio Palocci, que fizeram parte da coordenação da campanha subiam ao palco, mas se limitavam a breves comentários. José Eduardo Cardozo, secretário-geral do PT, que completa o triunvirato político, assistiu ao debate da plateia. 

 

Nas viagens pelo País, só um deles acompanhava Dilma. Embora a coordenação da campanha tenha sido ampliada no segundo turno, com os nomes de Ciro Gomes, do PSB, e Wellington Moreira Franco, do PMDB, o núcleo de decisão continuou sob o comando do trio Dutra, Palocci e Cardozo.

 

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Tela quente: os debates foram marcados por acusações e pouca discussão de propostas

 

As primeiras pesquisas após a votação do dia 3 de outubro, que mostraram o rápido e perigoso crescimento de Serra, provocaram a primeira crise na equipe de Dilma. Lula, nos bastidores, interveio. O presidente cobrou mais politização e a comparação de seu governo com o do tucano Fernando Henrique Cardoso. 

 

Foi de Lula também a sugestão para que a sua candidata não aceitasse calada as acusações de corrupção envolvendo Erenice Guerra, seu braço-direito na Casa Civil. Era preciso agir rapidamente para que a sangria de votos, que caíam no colo do candidato tucano, estancasse. 

 

Assim toda vez que o nome Erenice Guerra viesse à tona, Dilma passaria a citar Paulo Vieira de Souza, conhecido como Paulo Preto, acusado de desviar R$ 4 milhões da campanha tucana, em reportagem da revista ISTOÉ. Na guerra santa para virar presidente, Deus definitivamente entrou na eleição. Em seus discursos, Dilma passou a usar expressões religiosas. 

 

“Se Deus quiser e com a graça de Deus, vamos conquistar a vitória”, passou a dizer ela, no final de seus discursos. Foi até o santuário de Aparecida, em São Paulo, onde participou de uma missa na Basílica de Nossa Senhora Aparecida. A então candidata assinou também uma carta na qual se comprometia a não enviar para o Congresso projetos que alterem a lei sobre o aborto. Atualmente, ele só é permitido em caso de estupro e risco de morte para a mãe.

 

O distanciamento do primeiro turno deu lugar a uma Dilma menos formal e mais solta. Os púlpitos de acrílico, conhecidos por Alfredo e Alberto, usados para acomodar microfones de emissoras de tevê, e os cercadinhos, que afastavam a candidata da imprensa, foram aposentados no segundo turno. 

 

Dilma passou a fazer entrevistas “quebra-queixo”, cercada por jornalistas e microfones. Lula voltou também a ser figura frequente nos programas de tevê. No segundo turno, o presidente esteve ao lado da candidata em dez eventos de campanha. Dilma visitou  11 Estados e foi seis vezes à capital paulista, três vezes a Belo Horizonte e outras três ao Rio de Janeiro.  Foi uma odisseia até o grande dia.

 

Cerca de 24 horas antes de ser declarada oficialmente presidente, Dilma refugiou-se em Porto Alegre. Voltava de Belo Horizonte, cidade natal, onde fez o último ato de sua campanha. Naquela noite, jantou com Carlos Araújo, seu ex-marido, e a atual namorada dele, Ana. 

 

O cardápio incluía arroz com feijão, maionese caseira com ovos caipira e filezinho de panela com alho. Bebendo um vinho chileno, os dois relembraram, como em um filme, a trajetória de ambos. O desfecho do dia seguinte, admitiram, nunca passou pela cabeça dos dois. 

 

“A gente falou: quando que na prisão a gente imaginaria que ia chegar um dia como este? O mais significativo é pensar como uma pessoa como a Dilma podia chegar a presidente”, disse Araújo ao jornal O Globo.  

 

No dia 31 de outubro, o mais importante de sua vida, acordou cedo e seguiu o ritual de ser maquiada e penteada por Rose Paz, que a acompanhou durante toda a campanha. Manteve uma antiga tradição gaúcha e tomou café da manhã com 200 aliados políticos no Hotel Plaza São Rafael, antigo reduto de brizolistas. 

 

Chegou ao som de jingles que relembravam a primeira campanha de Lula em 1989. Alceu Collares, ex-governador do PDT, que deu a ela o primeiro cargo público, estava ao seu lado no evento. Votou e se recolheu à casa da filha Paula, na companhia do neto Gabriel. 

 

Despediu-se mais uma vez do ex-marido. Em Brasília, ficou recolhida até ser declarada oficialmente eleita. Depois de discursar no Hotel Naoum, foi ao Palácio da Alvorada. Em um encontro emocionado, ouviu de Lula os parabéns. “Presidenta, que Deus te abençoe”, disse Lula antes de abraçá-la e beijar seu rosto. “Valeu, valeu, valeu”, completou. 

 

Dilma estava acompanhada do trio Palocci, Dutra e Cardozo. Também marcaram presença governadores e ministros, muitos interessados em ser vistos e considerados para o novo governo. No local, serviam-se salgadinhos e bebidas. 

 

Passava da meia-noite do dia 1º de novembro quando Dilma recolheu-se à sua mansão no Lago Sul. Foi só aí, quando chegou em casa, sozinha, que se permitiu dominar pela emoção. Chorou, chorou muito. E se entregou ao primeiro sono presidencial.

 

Colaboraram: Guilherme Queiroz e Rodolfo Borges

 

 

 

Faltou a Serra a elegância dos derrotados

 

Tucano demorou para reconhecer a vitória de Dilma e desagradou aos companheiros de partido com seu “até logo”

 

Milton Gamez

 

Faltou elegância. É o mínimo que se pode dizer do comportamento do candidato José Serra (PSDB) após a derrota para Dilma Rousseff (PT) na disputa presidencial. Embora a vitória matemática de Dilma tenha sido oficialmente anunciada ao vivo pela televisão pouco depois das oito horas da noite do domingo 31, Serra só reconheceu a derrota duas horas e meia mais tarde. 

 

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O último discurso: Serra fala em trincheira e admite: “Quis o povo que não fosse agora”

 

Pior: só veio a público depois que a presidente eleita já havia feito seu discurso da vitória. Numa demonstração de falta de boas maneiras políticas, durante sua reclusão o tucano nem mesmo telefonou para a petista para cumprimentá-la pelo resultado incontestável das urnas. 

 

Segundo consta, Serra ligou para Dilma no momento em que ela começava a discursar, em Brasília. Foi atendido por Antônio Palocci e ouviu um educado “Ela não pode atender agora”. Patético.

 

Como descreveu o presidente Lula sobre a campanha eleitoral, “Serra saiu menor do que entrou”. Sem entrar no mérito sobre quem atirou a primeira pedra e baixou o nível da campanha – os dois lados se excederam e fizeram mais críticas entre si do que propostas para melhorar o Brasil –, Serra perdeu a chance de sair de cena com dignidade, como fez nos Estados Unidos o rival de Barack Obama, John McCain, há dois anos. 

 

Tão logo soube dos resultados das eleições, o republicano telefonou para o democrata e o saudou. Numa lição de democracia, McCain admitiu a derrota prontamente, elogiou Obama inúmeras vezes e aceitou a voz do povo com humildade. 

 

Para acalmar simpatizantes revoltados durante seu discurso, ele elevou o tom de voz e não deixou dúvidas sobre a postura que esperava de todos os cidadãos: “Desejo que Deus acompanhe o homem que foi meu adversário e será meu presidente.” Seria demais exigir de Serra que chamasse Dilma de “minha presidente”? 

 

O tucano só se referiu a ela uma vez, para cumprimentar a “candidata eleita Dilma Rousseff”. Ao dizer “quis o povo que não fosse agora” e “até logo”, o tucano ainda incomodou companheiros de partido que preferem ver outro nome para disputar a sucessão de Dilma em 2014. As urnas falaram e é preciso saber ouvir o recado. Este não é sutil, como o toque do corvo do poeta Edgar Allan Poe, mas diz o mesmo: “nunca mais, nunca mais”.