Prefeito afastado, donos de boate procurados pela Interpol, 180 milhões de dólares em ações judiciais, a queda de um governo: incêndios em casas noturnas pelo mundo tiveram desfechos dramáticos.

Jovens saem para se divertir e encontrar os amigos no que parece ser uma noite como qualquer outra. Mas em meio ao ambiente abarrotado e de música alta, uma faísca desponta: o fogo se alastra rapidamente e o pânico e a fumaça tóxica tomam conta do local. Esse pesadelo de morte e dor ocorreu com características similares em diversas partes do mundo.

Nesta terça-feira (13/06), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) começou a julgar um recurso que pretende restabelecer a condenação dos acusados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que deixou 242 mortos. Os envolvidos em tragédias recentes semelhantes foram responsabilizados de distintas formas.

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Alguns casos contaram com punições mais abrangentes, outros tiverem julgamentos menos rigorosos, e há ainda os que responsabilizaram com maior severidade o setor público e suscitaram grandes mudanças políticas. De processos longos e tortuosos na Justiça à ações mais imediatas, a DW reuniu alguns casos com repercussões emblemáticas.

Argentina – Boate de Cromañón

Em 2004, 194 jovens morreram em um incêndio na boate República de Cromañón, em Buenos Aires. O fogo começou após um integrante da plateia acender um explosivo durante o concerto de rock da banda Callejeros. O espaço com capacidade para cerca de mil pessoas tinha mais de três mil na noite da tragédia, as saídas de emergência estavam obstruídas e a licença dos bombeiros, vencida.

O caso estremeceu o país e levou à destituição do então prefeito de Buenos Aires, Aníbal Ibarra, considerado politicamente responsável. No total, 28 pessoas foram responsabilizadas criminalmente e 14 foram presas por incêndio culposo.

A maior pena foi de 10 anos para o dono e gerente da boate, Omar Chabán, que faleceu no cárcere em 2014. A condenação final também resultou em oito anos de prisão para o então subcomissário de segurança na cidade, cinco anos para o empresário da banda, seis anos para o sócio de Chabán, e quatro anos para o dono do complexo onde funcionava a boate. Os seis integrantes da banda Callejeros, que inicialmente haviam sido absolvidos, posteriormente foram considerados organizadores do evento e receberam penas que variaram de cinco a sete anos de prisão. Três funcionários públicos ligados a fiscalização e controle receberam sentenças de dois a quatro anos de prisão.

O incêndio de Cromañón também desencadeou uma investigação paralela que resultou na condenação e prisão de agentes públicos e empresários envolvidos em esquemas de suborno e alvarás de funcionamento irregulares em outros estabelecimentos noturnos da cidade.

Estados Unidos – The Station

Em 2003, um incêndio atingiu a boate The Station, no estado americano de Rhode Island, matando cem pessoas e deixando outras centenas gravemente feridas. O fogo começou com a performance pirotécnica da banda de rock The Great White e as chamas espalharam-se rapidamente devido à espuma acústica inflamável que revestia o ambiente.

O empresário da turnê da banda, Daniel Biechele, foi condenado a quatro anos de prisão por homicídio culposo, mas cumpriu apenas dois, sendo liberado por mostrar remorso genuíno. Um dos proprietários do clube cumpriu dois anos de prisão e o outro prestou serviço comunitário. A boate tinha as autorizações de funcionamento em dia, o que levantou questionamentos por parte daqueles que buscavam justiça, já que a espuma imprópria foi negligenciada pela fiscalização e nenhuma autoridade pública foi punida.

Uma série de ações judiciais arrecadou cerca de 180 milhões de dólares em compensação às famílias das vítimas e aos sobreviventes com sequelas da tragédia. Os réus incluíram a banda Great White, fabricantes de espuma, o ex-inspetor de incêndio de West Warwick, a cidade de West Warwick, o estado, a Clear Channel Broadcasting, entre outros. Até mesmo a cervejaria Anheuser Busch entrou em acordo para o pagamento de 21 milhões de dólares; apesar de não reconhecer irregularidades, a empresa foi citada nas acusações por promover o show no The Station.

China – Complexo Dongdu, boate de Natal

Em 2000, 309 pessoas morreram em um incêndio em uma discoteca na cidade de Luoyang. Autoridades condenaram 23 pessoas a penas de prisão de até 13 anos. A sentença mais longa foi para Wang Chengtai, um soldador cuja tocha iniciou o incêndio no porão do prédio comercial de Dongdu, onde o clube ficava localizado.

Dois gerentes do edifício foram condenados a nove anos de prisão. Relatórios apontaram que o prédio havia sido reprovado em 18 verificações de segurança em dois anos. Nove oficiais de incêndio e segurança de Luoyang receberam penas de prisão de sete anos por negligência do dever e abuso de poder.

Peru – Utopía

Em 2002, 29 jovens perderam a vida em um incêndio na discoteca Utopía, em Lima. A festa era também o lançamento de um perfume e contou com um extravagante show circense com centenas de bailarinos, animais exóticos e malabarismo com – é claro – fogo. O local não possuía medidas básicas contra incêndios, como extintores, e nem licença para funcionar.

O processo judicial foi encerrado somente em 2014 e atribuiu a maior pena a Percy North, administrador da boate, que cumpriu sete anos de prisão. O barman que iniciou o fogo cumpriu 15 meses de prisão. Os donos do Utopía, Édgar Paz Ravines e Alan Azizollahoff Gate foram condenados a quatro anos de prisão cada, mas fugiram do país em 2004, logo antes do primeiro júri. Os dois figuraram por anos nas listas de buscas da Interpol e o Ministério do Interior peruano incluiu seus rostos em um programa de recompensas por informação sobre seus paradeiros.

Édgar Paz Ravines foi localizado em 2018 no México e extraditado ao Peru em 2020 para cumprir a pena. Mais tarde, Alan Michael Azizollahoff Gate foi encontrado na África do Sul, e em 2020 o governo peruano efetuou seu pedido de extradição. Não foram encontradas notícias confirmando a chegada do último ao Peru.

Romênia – The Colectiv

Em 2015, na capital Bucareste, 64 pessoas morreram em decorrência de um incêndio iniciado durante o concerto da banda de rock Goodbye to Gravity na casa noturna The Colectiv.

Oito pessoas foram presas: o ex-prefeito do distrito, Cristian Popescu Piedone, condenado a quatro anos de prisão por permitir que o Colectiv operasse apesar de não atender aos padrões de segurança; três proprietários da boate; um pirotécnico; o diretor de uma empresa de fogos de artifício e dois bombeiros que haviam emitido licenças para o local. Alin Gheorghe Anastasescu, um dos proprietários, recebeu a sentença de prisão mais longa, de 11 anos. Investigações apontaram que dezenas de outros bares e boates na Romênia não cumpriam medidas de segurança contra incêndios.

O entendimento de que a corrupção e a negligência foram a gênese da tragédia despertou a raiva da população e deu início a uma onda de protestos. Cerca de 20 mil pessoas tomaram as ruas do país pedindo a queda do governo, e o então primeiro-ministro Victor Ponta resignou do cargo.

Russia – Lame Horse

Em 2009, um incêndio na boate Lame Horse vitimou 156 pessoas na cidade de Perm. As chamas de uma performance com pirotecnia espalharam-se pelo plástico inflamável do teto e as decorações de madeira da festa. O local não possuía saídas de emergência e funcionava com diversas irregularidades.

Dias após a tragédia, quatro pessoas envolvidas no caso foram detidas, e o primeiro júri aconteceu já em 2010. O júri final se deu em 2013, resultando na prisão de oito pessoas com as respectivas sentenças: dez anos de prisão ao dono do clube, Anatoly Zak, quatro anos à gerente-executiva do clube, seis anos a outro sócio-proprietário, cinco ao diretor artístico e ao pai e filho organizadores do show com fogos de artifício. No setor público, dois inspetores de segurança de incêndio foram sentenciados a quatro e cinco anos de prisão. O inspetor-chefe de incêndio da região também foi acusado, mas teve sua pena reduzida ao pagamento de uma multa.