22/11/2025 - 20:26
Orçamento sensível a gênero planeja o uso do dinheiro público considerando as desigualdades estruturais entre homens e mulheres. No Brasil, abordagem ainda engatinha.Políticas públicas convencionais costumam ignorar diferenças que afetam o dia a dia das mulheres. O impacto de um sistema de transporte, de programas de segurança ou de ações na saúde, por exemplo, não é o mesmo para quem acumula tarefas dentro e fora de casa, cuida dos filhos e percorre longas jornadas dentro das cidades. É aí que entra o orçamento sensível a gênero (OSG), uma forma de planejar o uso do dinheiro público considerando as desigualdades estruturais entre homens e mulheres .
Criado na Austrália nos anos 1980, o OSG busca integrar a perspectiva de gênero nas decisões orçamentárias, desde a formulação das políticas até a avaliação dos resultados. No Brasil, Recife é uma das cidades pioneiras na adoção do mecanismo, incorporando-o ao seu planejamento orçamentário desde 2001 para ampliar a inclusão social e econômica das mulheres.
Não se trata de “criar um orçamento separado para mulheres”, mas de “integrar essa perspectiva em todas as etapas de decisão”, explica a economista Patrícia Tendolini Oliveira, mestre em Administração e coordenadora dos cursos de Negócios Internacionais e Relações Internacionais da PUCPR.
O objetivo, afirma ela, é identificar e implementar ações para reduzir desigualdades e promover a equidade, partindo de questionamentos como quem se beneficia dos investimentos públicos, se há desigualdade no acesso a serviços ou políticas e se os gastos reduzem ou reforçam as disparidades existentes.
“Programas de transporte público, saúde, segurança e educação têm impactos distintos em homens e mulheres, porque as formas como participam do mercado de trabalho, cuidam da família e se deslocam são diferentes”, exemplifica Oliveira.
Como o OSG funciona na prática
Defensores do orçamento público sensível a gênero afirmam que ele permite direcionar recursos de forma mais eficaz e é um aliado no combate à desigualdade social.
Segundo Larissa Rosa, pesquisadora do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA USP (Made), ao considerar desigualdades específicas que atingem as mulheres, como a sobrecarga do cuidado, é possível agir diretamente sobre as causas estruturais do problema.
“Da política de cuidado até a de segurança, que pode oferecer proteção específica contra a violência de gênero , o orçamento pode incorporar estratégias para reduzir desigualdades que afetam o gênero feminino”, afirma.
Essa integração, acrescenta, contribui para metas amplas como menos violência, melhor acesso à saúde, mais meninas na escola e maior participação feminina no mercado de trabalho.
A transversalidade é um dos pontos fundamentais do modelo. Rosa lembra que a construção de um orçamento sensível a gênero não deve ficar restrita a secretarias específicas. “É comum pensar que esse é um trabalho apenas da secretaria das mulheres, mas todas as políticas afetam desigualdades de alguma maneira. Mesmo quando uma política parece neutra, ela pode estar reforçando o estado atual das desigualdades”, frisa.
Já Oliveira, da PUCPR, destaca que essa abordagem não cria novas despesas, e sim redefine prioridades. “Investir em saúde, educação infantil, assistência social e políticas de combate à violência de gênero deve ser visto como algo que traz retorno, porque melhora a autonomia econômica das mulheres e reduz ciclos de pobreza”, diz.
Em políticas como o Bolsa Família, por exemplo, 83% dos benefícios estão no nome de mulheres, segundo dados do governo federal, o que mostra que elas ainda são as principais responsáveis pelo sustento familiar. “Nove entre cada dez lares chefiados apenas por mulheres estão entre os mais pobres. Isso revela que o problema é tanto social quanto econômico, e precisa ser considerado no planejamento público”, aponta Oliveira.
Esse raciocínio se aplica a áreas diversas. Na saúde, Oliveira cita a importância de fortalecer o atendimento à saúde mental e aos serviços materno-infantis, já que as mulheres são as principais usuárias do SUS. Na educação, defende ampliar o acesso à creche e investir em formação técnica e profissional para meninas e mulheres em áreas de ciência e tecnologia. Em segurança pública, ela aponta a necessidade de ampliar delegacias especializadas e garantir mobilidade urbana segura, com infraestrutura e iluminação adequadas.
Onde o OSG já está em prática
Embora o Brasil ainda não tenha um levantamento nacional sobre os estados e municípios que adotaram o OSG, algumas cidades têm se destacado, como Recife, Belo Horizonte e Goiânia. Já o Acre é um dos poucos estados que criaram normas específicas e publicaram relatórios sobre o tema.
“Hoje, os melhores exemplos estão em algumas capitais, mas a maioria das cidades ainda não incorpora a perspectiva de gênero em seus orçamentos, nem de forma estruturada, nem implícita”, afirma Oliveira, da PUCPR.
Recife é considerada referência por manter continuidade nas políticas e integrar o OSG desde o plano plurianual de 2001-2004. A cidade criou marcadores orçamentários para identificar onde os recursos são aplicados, promoveu integração entre secretarias e abriu espaço para participação da comunidade nas decisões – em linha com a Agenda 2030 da ONU, que definiu a promoção da igualdade de gênero como um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, observa Oliveira.
Em Belo Horizonte, a experiência é mais recente, mas traz aprendizados importantes. A cidade elaborou o Orçamento Temático da Mulher (OTM), um estudo ainda em fase de consolidação, não incorporado oficialmente ao Plano Plurianual (PPA).
O OTM é desenvolvido de forma colaborativa e busca apurar o orçamento destinado ao atendimento direto e indireto às mulheres, em diversas áreas das políticas públicas municipais. Inspirado em iniciativas como o Orçamento da Criança e do Adolescente (OCA), o projeto transforma o mapeamento de recursos em ferramenta de gestão, permitindo identificar falhas na distribuição de verbas, planejar políticas mais integradas e fortalecer o diálogo com conselhos e movimentos sociais.
De acordo com Denise Barcellos, diretora da Central de Planejamento da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão de Belo Horizonte, “o OTM é um passo importante para tornar o orçamento municipal mais sensível às questões de gênero, garantindo recursos e permitindo seu monitoramento efetivo”. A metodologia se baseia em eixos como segurança pública, empoderamento econômico e mobilidade urbana.
“O orçamento sensível a gênero traz benefícios significativos não apenas para as mulheres, mas para toda a sociedade, pois busca garantir que os recursos públicos sejam alocados de forma justa e eficaz para atender às necessidades de todos os grupos sociais”, diz Barcellos.
Por que ainda há resistência
Apesar dos avanços em algumas capitais, a implementação do OSG ainda é limitada no Brasil.
“Enquanto algumas gestões optam pela elaboração apenas de um mapeamento das políticas já existentes, outras avançam de forma mais inovadora. No entanto, pouco é produzido em termos de registros”, afirma a pesquisadora Clara Brenck, do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP).
Ela atribui a baixa implementação do OSG a obstáculos políticos e estruturais, que levam a políticas descontínuas e fragmentadas. “Muito se perde entre as trocas de governos, partidos e ideologias diferentes. Além disso, a falta de dados consistentes sobre gênero e outras perspectivas, como o tempo que mulheres dedicam ao cuidado de crianças e idosos, dificulta a construção de políticas públicas eficazes.”
Outro entrave é a falta de participação popular. Segundo a pesquisadora, a população ainda tem pouco conhecimento sobre o orçamento público e raramente é incluída nas discussões, o que inibe a fiscalização e engajamento.
Ela diz que políticas públicas que ignoram a perspectiva de gênero podem reforçar desigualdades de renda, mantendo ciclos de pobreza e limitando o acesso de crianças a saúde e educação de qualidade, além de impactar diretamente a economia.
“Além da desigualdade persistente, há menor crescimento potencial, mais dependência de programas assistenciais e maior gasto público futuro. Reduzir desigualdades contribui para o crescimento econômico, porque famílias com mais renda consomem mais, aquecendo o mercado interno”, argumenta.
Para especialistas, a expansão do OSG exige compromisso político, dados estruturados e participação da sociedade. Eles destacam que políticas focadas em educação, saúde e cuidado podem aumentar a autonomia econômica das mulheres, melhorar a produtividade das próximas gerações e reduzir desigualdades históricas, beneficiando não apenas as mulheres, mas a economia e o desenvolvimento social como um todo.
“Um orçamento inclusivo pode ter uma capacidade enorme de aumentar a renda das famílias, reduzindo gastos com serviços privados e liberando essa renda para que seja consumida de outras formas”, conclui Brenck.