Brasil ganhou no final do ano sua primeira Política Nacional de Cuidados, que busca apoiar as famílias e incentivar os homens a se engajarem mais. Chile, México e Colômbia também desenvolvem iniciativas.Lavar a roupa, alimentar as crianças e arrumar a casa dá um baita trabalho – e se alguém não tivesse feito isso quando você usava fraldas, dificilmente você estaria lendo este texto agora. Essas são as chamadas atividades de cuidado: tudo o que é necessário para sustentar e dar continuidade à vida humana.

Em geral, quem realiza a maior parte desse trabalho é uma mulher. Caso você tenha crescido numa família de renda mais alta no Brasil, é possível que uma empregada doméstica – também mulher – tenha assumido parte dessas atividades.

Além das crianças, as atividades de cuidado são essenciais para idosos e pessoas com deficiência, e a desigualdade de gênero se mantém, com as mulheres respondendo pelo grosso das demandas.

Esse retrato está na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE de 2022: em média, as mulheres dedicaram 21,3 horas por semana a atividades de cuidado e afazeres domésticos, enquanto os homens, 11,7 horas. A diferença é ainda maior para mulheres negras, que dedicam a essa atividades 1,6 hora por semana a mais que as brancas.

Isso gera o que especialistas chamam de pobreza de tempo, que dificulta que as mulheres entrem e permaneçam no mercado de trabalho em condições de igualdade com os homens, e reduz sua disponibilidade para se dedicar a estudos ou à vida pública.

Alguns países da América Latina estão adotando políticas públicas para tentar reduzir essa desigualdade. E o Brasil é um deles. No último trimestre do ano passado, a Câmara dos Deputados e o Senado aprovaram a Política Nacional de Cuidados, sancionada em 23 de dezembro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Qual é o objetivo da política

Originado de uma proposta do Executivo enviada ao Congresso, o texto estabelece diretrizes para a elaboração e promoção de políticas públicas que apoiem as famílias no cuidado de quem precisa, garantam direitos das pessoas que trabalham no serviço de cuidado e incentivem uma mudança cultural que engaje mais os homens nessas atividades.

Uma das autoridades envolvidas no desenho da política é Laís Abramo, secretária nacional de Cuidados e Família. À DW, ela afirma esperar que a iniciativa sirva não só para reduzir as desigualdades presentes no cuidado de crianças, pessoas com deficiência e idosos. Mas também para preparar melhor a sociedade brasileira para o futuro – afinal, a população está envelhecendo, e o número de idosos será cada vez maior, enquanto as famílias tendem a ter cada vez menos integrantes para prover esse cuidado.

“Queremos promover a corresponsabilização pelo trabalho de cuidado entre homens e mulheres dentro das famílias; e entre as famílias, a comunidade, o Estado e o setor privado”, afirma. “Olhando ao mesmo tempo quem precisa do cuidado e quem cuida.”

No caso das crianças e adolescentes, ela diz que o objetivo principal é a expansão da cobertura de creches. Por lei, toda criança brasileira de zero a três anos já tem direito à creche, mas na prática muitas não têm esse acesso garantido – segundo um levantamento divulgado em agosto de 2024, 632 mil estão nessa situação.

Também é necessário expandir a escola em tempo integral e criar espaços para que as crianças possam ser cuidadas à noite, caso a mãe e o pai precisem sair para estudar ou trabalhar nesse período.

No caso de idosos e pessoas com deficiência, a política buscará ampliar serviços de atendimento domiciliar para apoiar as atividades básicas e centros para essas pessoas passarem o dia com atividades, como os Centro-Dia, já existentes em algumas cidades brasileiras.

“Isso é muito benéfico tanto para quem está nessa condição, como para seus cuidadores, pois libera o tempo dessas mulheres para que possam ter atividades de auto-cuidado, descansar, fazer algum curso de formação profissional e ter alguma atividade de geração de renda”, diz Abramo.

Outra proposta é criar locais que facilitam o trabalho de cuidado, como cozinhas comunitárias e lavanderias coletivas, já existentes em algumas cidades. O objetivo é apoiar em especial as famílias que não têm em suas casas as máquinas e o espaço apropriados. O Ministério das Mulheres já vem financiando a construção e manutenção de algumas lavanderias comunitárias.

Não há, porém, detalhes ainda de como exatamente o governo pretende promover a “corresponsabilização” entre homens e mulheres nas famílias. Uma medida relevante nesse sentido seria o aumento da licença-paternidade – hoje de apenas cinco dias, contra 120 dias assegurados às mães.

No final de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu ao Congresso prazo de 18 meses para regulamentar as regras do benefício para os pais. O prazo termina em junho deste ano, e se até lá os legisladores não encaminharem uma proposta, a Corte assumiria a tarefa.

O detalhamento das propostas do governo constará do Plano Nacional de Cuidados, que está na fase final de elaboração e não precisa de aprovação do Congresso. Elas envolvem a ampliação da cobertura de serviços já existentes, assim como a criação de novos serviços – para os quais serão necessários investimentos.

Abramo diz que o plano em discussão no governo aloca verbas já existentes e prevê cofinanciamento entre governo federal, estados e municípios, mas que para que a política “se implemente e se consolide” serão necessários mais recursos, que não estão garantidos.

Debate no G20 e avanços na América Latina

As políticas públicas de cuidado foram tema de um simpósio internacional em outubro na Universidade de São Paulo, promovido pelo Centro Mecila, um consórcio de universidades e institutos alemães e latino-americanos. O evento fez parte das atividades paralelas de think tanks para a preparação da cúpula do G20 no Rio de Janeiro, ocorrida em novembro.

Raquel Rojas, pesquisadora de pós-doutorado do Mecila e da Universidade Livre de Berlim, relata à DW que a inclusão das políticas de cuidado no rol de responsabilidades governamentais só não entrou em um dos comunicados do G20 por causa da oposição do governo da Argentina, motivado pela visão de que cuidado seria um assunto restrito à família.

Apesar disso, ela diz que a última década tem sido de avanços na América Latina. O Uruguai foi o primeiro país a adotar uma política estruturada para o tema, em 2015, e outros caminham nesse sentido. O governo do Chile enviou em junho ao Congresso um projeto de lei para criar seu Sistema Nacional de Apoios e Cuidados, e o governo do México recebeu no começo de dezembro financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento para projetar seu Sistema Nacional de Cuidados.

Bogotá também é um exemplo: a cidade colombiana tem 24 unidades de suas Manzanas del Cuidado (Quarteirões do Cuidado), onde as cuidadoras deixam suas crianças sob supervisão enquanto elas podem, no mesmo local, obter qualificação profissional, fazer exercícios físicos, receber orientação jurídica e psicológica, lavar as roupas da família de graça ou simplesmente descansar.

No Brasil, o assunto foi tema da redação do Enem de 2023, que pediu aos estudantes para escreverem sobre os “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

“O cuidado não deve ficar dependente somente da família, pois de acordo com a posição da família na estrutura social, elas terão mais ou menos acesso a serviços de cuidado e isso reproduz desigualdades. Se há serviços de cuidado ofertados pelo Estado, isso torna o campo mais igualitário”, diz Rojas. “Além disso, os homens devem participar mais. Não há uma razão biológica para que as mulheres tenham que carregar sozinhas esse fardo.”

A secretária Laís Abramo também pontua que a desigualdade no cuidado não é só de gênero, mas também de renda e de raça. “Tanto na carga do trabalho não remunerado, como nas profissões do cuidado, a maioria são mulheres negras”, afirma. “E as mulheres negras estão nas piores ocupações, com menos proteção. Muitas vezes são mulheres sozinhas que têm que ser, ao mesmo tempo, as provedoras econômicas e as cuidadoras das famílias, porque não têm recursos para comprar os serviços de cuidado no mercado”.