Inspirado por bispo brasileiro, papa instituiu o pecado ecológico, se aproximou dos indígenas, adotando até mesmo seu imaginário e linguagem, e pregou a restauração da “Mãe Terra”.Primeira mulher a liderar mais de 400 povos indígenas de toda a Pan-Amazônia, Fany Kuiru Castro diz que não está num papel fácil. A advogada colombiana representa mundo a fora os moradores da maior floresta tropical, e considera que uma autoridade global ajudou a abrir as portas: papa Francisco.

“Ele sempre falou ‘minha querida Amazônia’. E sua linguagem falava sobre ‘a mãe Terra’, o extrativismo e os danos que isso causava na Amazônia”, afirma Castro, à frente da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica, Coica, na sigla em espanhol.

Foi o ex-arcebispo de Buenos Aires que colocou a preocupação socioambiental no centro da Igreja Católica. Pouco depois de assumir o pontificado, em 2013, apresentou a sua encíclica Laudato si, Sobre o cuidado da casa comum. No documento, de 2015, Francisco propõe uma “ecologia integral” como resposta ao impacto devastador da ação humana no planeta.

Não foi um movimento corriqueiro para o papa, lembra Dom Pedro Brito, arcebispo de Palmas e vice-presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam): “Não era um tema muito tratado dentro da igreja. Ainda hoje, é indigesto para alguns grupos”, comenta, em entrevista à DW.

O chamado ecoou não só dentro da fé católica. A colaboração do primeiro papa não europeu com especialistas em ciência climática e desenvolvimento sustentável, seu discurso sobre ética e justiça, podem ter influenciado o espírito de cooperação internacional que, no fim daquele ano, resultou em 195 governos fecharem sobre o Acordo de Paris na Conferência do Clima da ONU.

“A contribuição do papa Francisco para o discurso sobre políticas climáticas internacionais e objetivos de desenvolvimento sustentável inspirou a cooperação política que levou a acordos internacionais cruciais”, concluiu uma análise da Universidade de Princeton publicada à época.

“Ele apanhou muito, mas fez”

Em 2017, quando anunciou que a Amazônia viraria tema de um Sínodo, o papa foi bastante criticado. O próprio governo brasileiro manifestou preocupação: a reunião no Vaticano se realizou no fim de 2019, primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro.

O Sínodo dos Bispos, instituído em 1965 pelo papa Paulo 6º, é uma reunião interna da Igreja Católica que discute questões afetando a instituição, e quais diretrizes devem ser tomadas. O debate produz um documento com medidas a serem acolhidas pelas igrejas em todo o mundo.

Para Dom Pedro, papa Francisco “ouviu o grito” dos bispos do Brasil e dos outros países que, desde a década de 1970, tentavam despertar a atenção da Igreja para a Amazônia: “Ele apanhou, mas fez. Apanhou de todo mundo quando decidiu fazer o Sínodo da Amazônia. Ele pegou um tema que era subjacente e deu importância”, lembra o porta-voz da Repam.

Com anos de experiência na Amazônia, Dom Pedro tinha uma sugestão e queria convencer o papa. Mas ele só tinha quatro minutos – esse era o tempo dado a cada bispo inscrito para uma conversa com o líder máximo dos católicos. A proposta era classificar como “pecado ecológico” crimes ambientais cometidos amplamente contra a floresta e seus povos, como desmatamento e poluição. “E isso foi proclamado. Está no parágrafo 82 do documento final do Sínodo. São quase as mesmas palavras que eu falei para o papa”, narra o arcebispo de Palmas.

O ponto em questão, publicado no documento final do encontro, define o termo como “um pecado contra as gerações futuras e se manifesta em atos e hábitos de contaminação e destruição da harmonia do ambiente, em transgressões contra os princípios da interdependência e na ruptura das redes de solidariedade entre as criaturas e contra a virtude da justiça”.

Perdão e reconciliação com os indígenas

Para Edson Krenak, escritor e pesquisador indígena que finaliza o doutorado na Universidade de Viena, na Áustria, papa Francisco era uma figura distinta da igreja, quase um ativista: “Ele deu passos muitos corajosos, de reconhecimento, de perdão, de reconciliação. Ele se abriu totalmente para a teologia ou espiritualidade indígena, usando a nossa linguagem, chamando o planeta de ‘lar comum’ e ‘Mãe Terra’. É uma expressão de que muitos teólogos não gostam, não aceitam.”

Um dos legados mais importantes, considera pesquisador, é a incorporação da perspectiva indígena aos ensinamentos católicos. Segundo esse olhar, o meio ambiente não pode ser confundido com um lugar que apenas fornece recursos para serem extraídos, mas um lugar de vida, de casa.

Dos encontros que teve com o papa, Gregório Mirabal, ex-coordenador da Coica, diz ter se impressionado com o respeito e admiração que ele demonstrava pelos povos indígenas como guardiões da natureza, da sabedoria ancestral e da vida comunitária: “Ele teve coragem e humildade para pedir perdão pela dor e luto causados durante a chegada dos europeus nas Américas.” Em 2016, no México, Francisco pediu perdão pela primeira vez aos povos originários pela violência cometida no passado em nome de Deus.

O Sínodo da Amazônia, afirma Mirabal, foi uma oportunidade para diálogo e reconciliação que mostrou mais uma vez para o mundo a importância da Floresta Amazônica: “O papa fez um apelo ao mundo para respeitar e proteger os direitos dos povos indígenas, suas culturas, territórios e autodeterminação.”

O que fica e o que vem

Apesar de todo o discurso e prática em defesa do meio ambiente, dos povos indígenas e dos mais pobres, Francisco deixou para o sucessor a missão de avançar na questão da propriedade, observa Edson Krenak.

“Ele mesmo diz num dos textos que a lei da propriedade não é um direito absoluto na história da Igreja e nunca pertenceu à teologia. Sendo a Igreja uma das maiores proprietárias de terras do mundo, faltou ela se movimentar nessa direção”, critica, sugerindo que a Igreja Católica deveria defender com firmeza a demarcação dos territórios indígenas.

Outro ponto ainda nublado, diz o pesquisador, é a extensão e localização das posses dos terrenos pela Igreja. “Na Índia, por exemplo, há denúncias de que parte da atividade rural de comunidades é limitada por empresários do agronegócio que usam terras da Igreja para grandes extensões de monocultura.”

Com a morte de Francisco, a ala católica mais atenta para a saúde do planeta tem uma preocupação com os rumos futuros: “Os ensinamentos sobre a ecologia integral do papa Francisco foram incorporados na liturgia e isso não muda quando ele morre. Não como a política, que muda tudo quando chega um novo eleito. A crise socioambiental está aí, não dá para negar, e nós temos que seguir”, adverte Dom Pedro.