Um dos nomes mais consagrados da literatura brasileira contemporânea, escritora diz que a literatura negra pode ajudar a combater o racismo e pede que a Europa faça mea-culpa de passado colonial.Aos 78 anos, a escritora, professora e ensaísta mineira Conceição Evaristo parece incansável. Em meio a uma disputada agenda, que inclui palestras, oficinas e aulas em universidades, Evaristo está escrevendo um novo livro: Em Nome de Mãe.

A obra será uma celebração de sua própria mãe – uma mulher que criou nove filhos e teve forte influência na formação da autora –, uma homenagem à “potência de maternidade que as mulheres negras têm”, nas palavras de Evaristo. Não apenas a maternidade física, mas também a maternagem – o ato mais amplo de cuidar, exercido por avós, tias e mulheres sem filhos. Há ainda um sentido simbólico, “onde as mães de santo tornam-se mães de toda a comunidade”.

A escritora, que disputou uma vaga para Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2018, diz não saber se voltaria a se candidatar. “O importante não é ser a primeira, é abrir perspectivas. A minha candidatura marcou a história da ABL. Apesar de eu não ser vitoriosa, ela ajudou a ABL a pensar nessa representatividade”, avalia Evaristo.

Depois da sua candidatura, várias mulheres foram eleitas, além do músico Gilberto Gil e do indígena Ailton Krenak. “Hoje celebramos a eleição de Ana Maria Gonçalves como a primeira mulher negra a ser eleita para a ABL. Já entrei para a Academia Brasileira de Letras, mesmo sem ter uma cadeira lá. O papel agora é da ABL de pensar a minha ausência ou a minha presença lá dentro”, afirma.

Em 2024, ao se tornar a primeira mulher negra eleita para a Academia Mineira de Letras (AML) em 115 anos da instituição, a escritora disse que não gostaria de ser só “representatividade” ou “enfeite” na entidade – na sua avaliação, um risco que muitos negros correm ao alcançarem posições de destaque no Brasil.

“Se formos procurar, por exemplo, nas grandes empresas, nas Forças Armadas, nas comunidades acadêmicas, vamos encontrar uma ou outra pessoa negra em lugar de destaque. Mas não podemos esquecer que essa é uma exceção”, alerta. Esses espaços “ainda têm uma maioria de pessoas brancas – é preciso haver uma paridade maior em todos os setores”.

“A literatura forma consciências”

Considerada uma das escritoras mais importantes da literatura brasileira contemporânea, a autora teve duas obras citadas em um ranking da Folha de S.Paulo dos 25 Melhores Livros Brasileiros do Século 21: Olhos d’água e Ponciá Vicêncio. Também ganhou o troféu Juca Pato de intelectual do ano, entregue pela União Brasileira de Escritores, em 2023.

Para Evaristo, ao quebrar estereótipos, a literatura negra – que ela confirma estar em expansão – pode ajudar a reduzir o racismo na sociedade brasileira: “Personagens com suas próprias potências, qualidades e defeitos acabam falando à humanidade de cada pessoa que lê.”

A autora conta que tem encontrado muitas pessoas brancas que dizem nunca ter pensado num racismo brasileiro, mas que passaram a pensar através de suas obras. A literatura, para Evaristo, forma consciências. “Textos de autoria negra convocam as pessoas a pensar nas suas responsabilidades como pessoas brancas”, acredita.

Evaristo já superou a marca de meio milhão de livros vendidos somente pela editora Pallas. Seus livros conseguem o feito de conquistar tanto os que têm “uma cultura acadêmica, quanto os que não têm a competência de uma linguagem mais sofisticada”, observa.

“Jorge Amado de saias”

Para Julio Ludemir, autor, curador e cofundador da Festa Literária das Periferias (Flup), “Conceição é uma Jorge Amado de saias”. Ludemir diz que a escritora traz o que hoje se conhece como lugar de fala, “o universo dessa mulher negra e intergeracional, interregional”. E faz isso “tocando no coração das pessoas”.

Não por acaso, tornou-se um fenômeno de popularidade: “Por onde passa, ela atrai multidões. Há sempre pessoas querendo abraçá-la, vendo-a como uma grande nanã (orixá das religiões de matriz africana ligada à sabedoria), vendo-a como essa senhora sábia, serena, delicada, acolhedora”.

Durante um trabalho em colégios da zona norte do Rio, isso ficou visível: “Como foi professora e aluna de escola pública, ela ocupa o espaço dessa grande avó que tem sido no imaginário brasileiro, que cativa a todas as crianças, todos os adolescentes, todas as professoras, todas as mães.”

Homenagem da Flup em solo alemão

Evaristo foi a grande homenageada de uma edição especial da Flup realizada na capital alemã nos dias 10 e 11 de outubro, e que contou com leituras, debates, workshops e performances.

“A Flup concorre para a democratização do livro, e traz essa possibilidade de a periferia reconhecer que os seus escritos, a sua dança, a sua música, têm esse teor de arte literária”, diz Evaristo.

A autora cobra dos europeus uma reflexão sobre a questão racial: “É uma espécie de mea-culpa que a Europa tem que fazer, na medida em que nós sabemos que essa questão do racismo nasce, ou é fomentada, pelo processo de colonização. Para se entender, ela precisa entender o mundo”.

“Nós sabemos das questões raciais que a Europa enfrenta com a imigração. E não por coincidência, essa imigração normalmente vem de países que foram colonizados por ela. A Europa deve saber que ela é responsável e criar medidas que possam dirimir um problema que está aí há séculos.”

Criadora do conceito de escrevivência

Evaristo costuma dizer que não nasceu rodeada de livros, mas de palavras. O que influenciou uma estética oral, que a leva a buscar expressões que possam dar conta de decifrar silêncios e olhares: “É um exercício extremo de tentar traduzir esse texto oral para o texto escrito.”

Criadora do conceito de ‘escrevivência’, a autora explica que ele surge da junção “de escrever, viver, escrever se vendo” – e nessa aglutinação de palavras está a união entre uma voz lírica e o sujeito criador.

O processo, segundo a autora, permite que escritores negros incluam em seus projetos literários as suas experiências, suas formas de estar no mundo e sua “brasilidade enquanto sujeitos descendentes de povos africanos” – que assim se tornam matérias que podem ser ficcionalizadas.

É também uma retomada da voz das mulheres negras – “da ama de leite, da mãe preta, que dentro da casa grande era obrigada a contar histórias para ninar”, mas cuja voz estava inscrita em processo de escravização.

“É cedo demais para se dizer que o país está menos racista”

Apesar de avançar na criminalização do racismo e apostar no sistema de cotas, o Brasil ainda tem um longo caminho pela frente na luta contra o racismo estrutural, diz a autora. “É cedo demais para se dizer que o país está menos racista. O que se pode dizer é que o Brasil se tornou um país menos cínico.”

O racismo brasileiro era tratado “com um cinismo muito grande, através do mito da democracia racial brasileira. Hoje, brancos e negros têm mais coragem de discutir o racismo. E acho que quando você põe o dedo na ferida é mais fácil você pensar em processos de cura dessa ferida.”

Sobre o racismo estrutural, Evaristo diz que há uma tendência em culpabilizar a sociedade – o que tira a responsabilidade das pessoas. “Só que as estruturas são criadas por sujeitos humanos. Eles vão criar leis, vão organizar as grandes empresas. E podem, portanto, promover mudanças.”

A escritora espera que a nova geração “não perca a perspectiva do que foi construído no passado, e saiba o que essa construção significa para a nossa vida no presente”. Ela lembra das palavras de Jurema Werneck, médica e ativista feminina: “Nossos passos vêm de longe”.