01/10/2014 - 15:55
Pode ser a sua primeira vez. Ainda assim, você receberá um sorriso amistoso do door captain como se já tivesse cruzado aquela porta giratória em muitas outras temporadas. Desviará dos Bentleys e das Ferraris estacionados em volta da praça. Olhará o mar incrivelmente azul, a infinidade de iates amarrados ao porto. Uma pequena flotilha de optimists da escolinha de vela cruzará com remadores na baía. Daquele ponto, em um mirante sobre o Mediterrâneo, sentirá o mundo aos seus pés. E, então, a cada passo, será possível esbarrar em um século e meio de nobreza, riqueza, fama e glória.
Você sentirá a presença de Grace Kelly – a atriz ou a princesa, pois ambas reinaram ali. Jurará ter visto Winston Churchill descendo as escadas do Hotel de Paris, seu refúgio luxuoso nos anos 1930, ou ouvido a voz de Maria Callas desafiando as paredes da Opéra, ali ao lado, enquanto John Wayne parte em direção ao Cassino. E tudo vai lhe parecer tão familiar como se houvesse mesmo vivido tudo aquilo. Afinal, você está em Mônaco. Poucos lugares no mundo são tão icônicos a ponto de tornar nossas as memórias de imagens, momentos e histórias que não presenciamos.
Grande parte da magia do principado, encravado entre o mar, a França e a Itália, está nesse passado glamouroso, repleto de personagens de contos de fada. Mas o que acontece quando Mônaco procura seu futuro? A resposta começará a ser escrita a partir de setembro próximo, quando históricas paredes começarem a ruir no interior de um de seus mais conhecidos e admirados endereços. O Hotel de Paris passará pela maior reforma de sua história, um projeto de 600 milhões de euros que promete abalar as estruturas da cidade-estado de tamanho equivalente a meio Central Park.
Mais que uma renovação, a obra é uma declaração de intenções. Controlada pelo príncipe Albert II, a Société des Bains de Mer de Monte Carlo (a Monte-CarloSBM) transformará o hotel e seus arredores (o projeto inclui a total reconstrução do Sporting d’Hiver, prédio vizinho que abriga lojas de luxo, um centro de convenções e cinemas) num manifesto de uma nova era para a companhia. Em outras palavras, para todo o principado. A SBM não é apenas a dona do Hotel de Paris e do mítico Cassino de Monte Carlo.
Trata-se simplesmente da maior empresa do país, que tem as chaves de nada menos do que 33 restaurantes, cinco cassinos, quatro hotéis, todos eles mundialmente conhecidos e renomados, como o hotel Hermitage, o Café de Paris, os resorts Monte-Carlo Beach e Monte-Carlo Bay, o Buddha-Bar, as Thermes Marins. Onipresente, a SBM literalmente se confunde com a história da cidade. E é nessa história, curiosamente, que foi buscar o seu futuro. “Vamos mudar tudo, menos a alma do Hotel de Paris”, resume Luca Allegri, o número dois na hierarquia da SBM.
É início de uma noite de primavera e ele recebe a Platinum, entre champanhe e barbajuans (o petisco típico de Mônaco, uma espécie de ravióli frito, recheado de espinafre e ricota suíça), para a happy hour no American Bar. Explicar essa alma não é difícil. Ela foi cuidadosamente concebida, na segunda metade do século XIX, pelo casal François e Marie Blanc, a quem Charles III, o então príncipe de Mônaco, entregou a missão de transformar o local, um árido território onde se plantavam limoeiros e oliveiras, em um ponto de atração para nobres e milionários, usando como chamariz as mesas de jogos e os banhos nas águas plácidas do Mediterrâneo.
Charles vislumbrou uma oportunidade – os países vizinhos (França e Itália) haviam proibido o funcionamento dos cassinos, empurrando fortunas para a clandestinidade – e foi buscar em Blanc o parceiro ideal. Com um projeto semelhante, ele havia transformado a pequena Bad Homburg, próxima a Munique, na Alemanha, em um ponto de encontro da aristocracia europeia. O empreendedor desembarcou em Mônaco em 1863. No final da década, havia rebatizado a cidade para Monte Carlo e já contabilizava mais de 170 mil visitantes por ano. Não fez isso sendo parcimonioso em suas escolhas.
Ao contrário, sempre que podia repetia um mantra que até hoje ecoa pelas encostas monegascas: “Estou convencido de que os ricos e os artistas não vão correr a Monte Carlo atrás de ouro, mas pelo desejo de se sentirem livres de tudo, de tentarem a sorte, de apostarem contra o destino. Isso vai acontecer se dermos a eles sonhos, prazer e beleza”. Mônaco, a SBM e o Hotel de Paris estão em transformação porque o jet-set também está. Mundo afora, riqueza e poder mudam de mãos e é preciso se adaptar aos novos tempos. O principado já viu esse filme antes, mas provavelmente nunca viveu desafio tão grande.
“Vivemos a era dos gregos nos anos 1960, dos italianos nos 1970, de árabes e libaneses nos 1980 e dos ingleses na década seguinte”, explica Gian Luca Braggiotti, presidente da casa de investimentos Monaco Asset Management. “Hoje, temos de nos voltar para o que desejam os emergentes, os russos, os chineses e, é claro, os brasileiros.” No entender dos gestores da SBM, eles querem o pacote clássico – entretenimento, luxo, jogos, bailes, esporte, personalidades internacionais –, acrescido de novos conceitos de conforto, tecnologia e sustentabilidade.
“Clientes chineses, por exemplo, têm exigências inéditas, como salas de jogos abertas 24 horas. Eles comparam Mônaco com destinos como Las Vegas e Macau”, reconheceu Jean-Luc Biamonti, presidente da SBM, no início de junho, ao oficializar a liberação dos recursos para a grande reforma. “Precisamos rever a nossa oferta e é por isso, entre outras coisas, que o Hotel de Paris terá quartos mais espaçosos. No novo Hotel de Paris, que levará quatro anos para ser concluído, a tradição ficará por conta dos salões por onde desfilaram – e ainda desfilam – nomes estrelados, do monumental lobby ao restaurante Le Grill, na cobertura, com seu teto retrátil.
Eles, assim como o salão Empire, onde se realizam as grandes galas anuais, o American Bar e o três-estrelas Louis XV, comandado pelo renomado chef Alain Ducasse, ficarão intactos. A fachada histórica, também. Nada restará, porém, dos quartos, que serão completamente remodelados e ficarão, além de mais amplos, mais iluminados e com decoração com toques de designs modernos. O projeto, assinado pelos arquitetos Richard Martinet e Gabriel Viora, terá como maior atrativo um espaçoso pátio aberto bem no centro do edifício, onde será criado um luminoso jardim.
Novas suítes e uma villa com piscinas e jardins privativos surgirão na cobertura, onde também funcionará um novo spa, com áreas para fitness e piscina. A obra será tocada em partes, mantendo o hotel em funcionamento. Há um sutil equilíbrio em jogo, mas a SBM já sabe que ele funciona. Em escala menor, já fez algo parecido com o Hermitage, vizinho e irmão mais novo do Hotel de Paris. O prédio em estilo Belle Époque hoje oferece um clima de hotel-butique em suas suítes e corredores, mas mantém a imponência que fez dele um cartão-postal monegasco, como a cúpula desenhada pelo arquiteto Gustave Eiffel, o mesmo da torre parisiense.
Os dois edifícios são unidos pelas passagens que levam às Thermes Marins, com a impressionante piscina de água marinha e o requintado spa que hoje leva a bandeira suíça La Prairie. Haverá novidades por lá também. Mas nenhum operário se aproximará dos caminhos que levam às caves, um dos tesouros mais bem guardados de Monte Carlo. Construídas sob os jardins do Hotel de Paris, elas são obra da persistência de Marie Blanc e uma atração à parte no principado. Petrus, Lafites, Latours de valiosas safras e outras preciosidades dividem espaço entre as mais de 300 mil garrafas estocadas no quase inexpugnável labirinto subterrâneo que hoje é considerado uma das maiores e mais valiosas adegas do mundo.
É um espaço tão nobre que, em 1977, a princesa Grace decidiu comemorar em uma de suas salas os 25 anos de casamento com Rainier. A grande mudança na paisagem monegasca acontecerá com a demolição do Sporting d’Hiver. No lugar do prédio em estilo art déco surgirá um complexo com sete edifícios modernos, idealizados pelo arquiteto inglês Sir Richard Rogers, ganhador do Pritzker em 2007, com espaços para lojas de grifes, lazer, escritórios e alas residenciais que estarão entre as mais sofisticadas do principado. A proximidade das obras exigiu outra interferência, essa já visível.
Na bela esplanada em frente ao Cassino, parte dos jardins foi transformada em um shopping temporário, que abrigará as 25 grifes que terão de deixar seus valiosos espaços no Hotel de Paris e no Sporting. Árvores foram removidas e todo o paisagismo foi refeito para receber verdadeiros “casulos” dispostos em torno de uma alameda sinuosa. Batizado de Jardim das Maravilhas, será inaugurado durante a atual temporada de verão. Mesmo com a previsão de que sejam desmontados dentro de quatro anos, os casulos têm tudo para se transformar em um marco da renovação arquitetônica pela qual Monte Carlo passa.
Além dos investimentos da SBM, o principado vive um boom imobiliário que inclui outras ousadias, como a Tour Odeon, torre residencial de 170 metros de altura que terá no alto uma cobertura com valor estimado em 300 milhões de euros, ou o novo Iate Clube em forma de navio, desenhado por Norman Foster. Em franca ebulição, Monte Carlo reforça suas baterias contra a concorrência dos destinos de luxo e de jogos buscando parceiros internacionais. Dono de uma fortuna superior a US$ 1 bilhão, o príncipe Albert sabe que é preciso alterar também as estruturas societárias da SBM para financiar o salto em direção ao futuro.
Ele já concordou em reduzir a participação familiar na companhia, de 69% para 60%, abrindo assim ainda mais as portas para grandes investidores estrangeiros, como o bilionário americano dos cassinos Steve Wynn, que já tem participação no grupo, e fundos de investimento do Oriente Médio, particularmente do Catar. A presença de capital externo é também uma espécie de tradição na companhia. O armador grego Aristóteles Onassis foi sócio e importante cliente da SBM nos anos 1970, quando desfilava pela cidade em companhia de Jacqueline Kennedy.
Mudam rostos e bandeiras, muda o cenário, acrescentam-se costumes ao antigo glamour. Os grandes bailes, a Fórmula 1, o Aberto de Tênis no Country Club, as festas inesquecíveis como o Diner Sur L’Herbe – o grande jantar de comemoração dos 150 anos da SBM, no ano passado, em que o chef Ducasse serviu os convidados em mesas instaladas sob o luar na praça do Cassino – continuarão sendo a marca de Mônaco. Mas, por exigência dos tempos, há espaço para muito mais.
No início de 2014, o restaurante Elsa, do hotel Monte-Carlo Beach, tornou-se o primeiro totalmente orgânico a receber uma estrela do guia “Michelin”. Quando François Blanc chegou ao principado, teve de ir por mar, num dos poucos barcos que faziam a rota da vizinha Nice para lá. Ele levou estradas e os trilhos de trem. Hoje, leva-se oito minutos para seguir de helicóptero do aeroporto de Nice até Monte Carlo para descobrir que ainda existe em suas ruas a aura projetada por Blanc: “Ninguém perde em Monte-Carlo”, disse ele em 1877. “Todos vêm aqui com uma esperança. O destino faz a viagem valer a pena.”
(Reportagem publicada na edição de junho, julho e agosto DE 2014 da ISTOÉ PLATINUM)