Em meio a narrativas contundentes de alinhamento com os princípios de responsabilidade ambiental, social e de governança, empresas ainda escondem dados financeiros, falsificam balanços e não divulgam informações básicas como o investimento na agenda

Dos 25 anos de existência do Instituto Ethos, Caio Magri está na instituição há 21. Exerceu diversos cargos até que assumiu a presidência em 2017, sendo reeleito por três vezes consecutivas para continuar a missão da entidade de apoiar, ajudar e contribuir para que companhias implementem uma gestão socialmente responsável. “Neste momento isso significa dar prioridade absoluta na transversalidade da estratégia corporativa de combate às desigualdades sociais”, afirmou Magri nesta entrevista à DINHEIRO.

A tarefa que não é trivial em nenhuma parte do mundo encontra um cenário ainda mais complexo em um País onde nem todas as leis previstas na Constituição são cumpridas, em que casos recentes mostram que a alta liderança de companhias descumprem regras de compliance e em que crimes como a prática do trabalho análogo à escravidão não levam ninguém à prisão.

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Ainda assim, Magri é um otimista e enxerga possíveis alternativas para a construção de um futuro mais justo. “Acredito que tenhamos um caminho possível que é conseguir criar um consenso na sociedade sobre o que é garantia para todos e que a gente tenha isso com qualidade”, afirmou.

DINHEIRO — O que o Ethos entende como uma atuação socialmente responsável pelas empresas?
Caio Magri — Partimos do princípio básico da relação das empresas com a sociedade, que é construir riqueza de maneira efetiva aliada à criação de mundo próspero e possível para todos. Neste momento isso significa dar prioridade absoluta na transversalidade da estratégia corporativa de combate às desigualdades sociais. As decisões empresariais têm de ser tomadas sob essa lente.

Apesar da teoria de uma sociedade igualitária parecer perfeita para todos, as empresas não ganham mais ao alimentar essa desigualdade?
Esse, sem dúvida, foi o caminho escolhido pela maioria até o momento. Até pouco tempo atrás, o processo dos investidores internacionais, como a BlackRock, na indução da estratégia ESG a reduziam a uma relação de mitigação de riscos e danos do capital. Não necessariamente visava ações que pudessem produzir impactos positivos e afirmativos de mudança. Só que outros interlocutores entraram nessa discussão usando as boas práticas ESG como referência para outras demandas. Entre eles, consumidores, trabalhadores, comunidades impactadas e governos. Agora as empresas precisam responder também a eles. Ter perspectivas de múltiplos stakeholders e não mais somente do shareholder muda a demanda por uma sociedade mais igualitária.

Provocar a desigualdade não é inerente ao ser humano? Se a partir de hoje todo mundo tivesse exatos US$ 100 para viver, em alguns dias não haveria um grupo com muito mais e outro com muito menos?
Sociedades que se reconstruíram depois de momentos de destruição em massa o fizeram em bases melhores. Um exemplo é a Europa. No pós-Segunda Guerra, os europeus foram para um lugar muito próximo em termos de renda e, a partir dali, políticas de bem-estar social para todos foram mais bem construídas. Desse processo de reconstrução pode emergir uma sociedade mais igualitária, menos desigual na perspectiva de relações humanas. Então acho que se a gente partir de uma base totalmente igualitária, há a possibilidade de uma sociedade mais justa. Mas nós nunca experimentamos, para saber o que de fato aconteceria se isso fosse possível.

Não há estudos que possam dar uma ideia?
Em um de seus estudos, o antropólogo Bronisław Malinowski retrata a tradição de uma comunidade indígena de um antigo território — hoje, Califórnia — onde não havia permissão para a acumulação econômica. Então, ao final do ciclo de quatro estações era realizado um ritual em que presentes dados ao líder ou os excedentes acumulados por um indivíduo eram queimados. A crença era que quanto mais a pessoa queimava, mais poder ela tinha. Em termos materiais, no entanto, todos começavam o novo ciclo nas mesmas bases. Acredito que tenhamos um caminho possível que é conseguir criar um consenso na sociedade sobre o que é garantia para todos e que a gente tenha isso com qualidade. Estou falando de educação, saúde, proteção social, habitação, infraestrutura.

Dá para falar em responsabilidade corporativa, em sociedades mais igualitárias sem que as empresas sejam mais transparentes nos aspectos financeiros, de impacto e de retorno social?
Transparência empresarial é um dos conceitos mais importantes na atual conjuntura. Esse é o indicador mais relevante para que a sociedade saiba se o compromisso empresarial é genuíno. Acúmulo de poder por meio da não transparência é um exemplo claro de má governança.

Ainda assim, empresas com belas narrativas de sustentabilidade se negam a falar de algo básico como o investimento que fazem na agenda. Como obter mais transparência?
Acredito que vamos chegar lá. As empresas estão começando a produzir relatórios mais completos, a desenvolver novos instrumentos de relatos e de transparência. Há também informações públicas que estão escondidas, mas que é possível achar quando se procura. Um exemplo são as diferenças salariais que são abissais. Dar visibilidade a isso, consultar os relatórios com rigor e constranger as empresas é um meio que a sociedade tem de acelerar as boas práticas. Isso já acontece via regulamentação.

Exemplo?
Um dos primeiros lugares foi a Califórnia. Todo produto vendido no estado precisa ter rastreabilidade que mostre a inexistência de tráfico de pessoas, de trabalho análogo ao trabalho escravo e de trabalho infantil. É lei, não tem conversa.

Só que no Brasil é comum a sensação de que há leis que pegam e as que não pegam. Se não cumprimos o básico, como falar em avanços na agenda ESG?
Essa é uma situação grave. Nós temos um dos mais completos pacotes legislativos de proteção ambiental do mundo. Isso atrai empresas. A marca de tênis francesa Vert fez um vídeo no qual diz que a escolha de vir para o Brasil foi fundamentalmente pela existência de um marco regulatório ambiental que era melhor do que o de qualquer outro país. A questão é a falta de implementação da lei. Outro problema é que no Brasil não construímos uma cultura empresarial em que a autorregulação é superior ou que prescinde da regulação.

Mas na ausência da legislação, a sociedade criou outros instrumentos para conseguir reconhecer empresas éticas como o próprio Instituto Ethos ou o Novo Mercado da B3. Ainda assim vemos casos como o da Americanas. Qual instrumento o consumidor pode usar para saber em quem confiar?
Desde o caso Siemens [em 2013, a empresa foi acusada de pagar propinas em licitações dos Metrôs de Brasília e São Paulo] até agora, aprendemos muito e melhoramos os mecanismos de compliance, de transparência. Mas os casos deles e o da Americanas nos mostram que será preciso criar novos instrumentos para quando a falha de compliance está no nível da alta gestão. Nos dois casos, a decisão foi tomada em níveis tão altos que os já existentes não chegaram lá. Ainda que tenhamos auditorias e certificações, a cultura de integridade tem de estar em todos os níveis empresariais.

Recentemente, o Instituto Ethos lançou uma carta compromisso sobre garantias de trabalho decente em plataformas digitais. A participação do iFood, que tem promessa de entrega expressa e está envolvido em reclamações de condições de trabalho para os entregadores, não é um contrassenso?
Essa carta de compromisso é resultado de uma longa discussão e consulta pública. Ali temos alguns princípios, recomendações e temas que devem ser tratados para implementar um programa de trabalho decente em plataformas digitais, de delivery ou não. Em paralelo está acontecendo uma discussão coordenada pelo Ministério do Trabalho reunindo as empresas e os trabalhadores para a construção de uma legislação que abranja questões como férias, horas de descanso, aposentadoria e outras coisas básicas. O modelo de negócios que o iFood e outras plataformas têm hoje não será o mesmo após a implementação desses compromissos a serem assumidos, seja na autorregulação ou por legislação. Entrega em 15 minutos, só quando a entrega for por drone.

Mas quais seriam as diferenças entre essas questões básicas propostas pela Carta ou por possíveis novas legislações e as atuais leis trabalhistas?
O reconhecimento do entregador como trabalhador passa por uma adequação da CLT. Ela sozinha não é suficiente. Além disso, nas consultas públicas que realizamos ficou claro que os entregadores querem proteção, mas não necessariamente carteira assinada.

Eles querem direitos e não deveres?
Não. Eles não se opõem ao pagamento de deveres, mas o que querem é a garantia de um trabalho decente.

Estamos discutindo trabalho decente em um País onde cerca de 2 mil denúncias de trabalho escravo foram registradas no ano passado. O Brasil pune o crime contra o trabalhador de maneira efetiva?
Nossa legislação de trabalho escravo é bastante avançada e está escrita no Código Penal. Temos também um instrumento inovador que é a lista suja do trabalho escravo. Então arcabouço legal nós temos, o que falta é a aplicação.

Se perguntadas, as chances de uma empresa falar que é antiética são mínimas ou inexistentes. Ainda assim, falam uma coisa e fazem outra. A ética é flexível?
Nenhuma ética é flexível. Os princípios éticos são basilares e trazem demandas de transparência e de uma cultura de integridade. Violar essas regras, mesmo que ainda não sejam leis, podem acarretar impactos sociais, ambientais, reputacionais e financeiros muito graves.

Passamos por quatro anos de um processo descivilizatório. O senhor acredita que o Brasil está voltando a padrões mais aceitáveis no trato social?
Eu acredito, mas o processo de retomada passa pelo protagonismo de lideranças empresariais que precisam vocalizar, participar. Que precisam sair debaixo daquela mesa em que eles ficaram escondidos durante quatro anos. É hora de agir e trabalhar para eliminar as desigualdades sociais.