O que você faria se um policial, aos gritos, apontasse uma arma para você quase em frente a sua casa? Alexandre Marcondes levantou as mãos e perguntou o que acontecia. Segundo o advogado de 45 anos, o PM afirmou que ele estava “em atitude suspeita” por usar máscara contra a covid e por causa de um adolescente que andava na mesma rua do Alto da Lapa, na zona oeste. Os dois estariam planejando assaltar um casal de idosos, segundo o policial.

O advogado denunciou atitude racista. A PM nega e afirma que “toda abordagem é realizada com base em critérios objetivos e legais”. Experiências como a de Alexandre ilustram o preconceito velado ou camuflado. Ele não é explícito, como chamar alguém de “macaco”, mas é comum. Está nos comentários sobre o cabelo e a cor da pele, no medo ao cruzar com um homem preto na rua ou quando uma funcionária suspeita que a cliente está furtando uma blusa, como aconteceu em uma loja Renner no Shopping Madureira, no Rio, na semana passada.

O OLHAR. Depois da abordagem, Alexandre sentiu as pernas bambas, sentou na calçada e chorou. Olhou para se certificar de que sua filha, de 6 anos, não tivesse visto a cena da sacada da casa onde moram na região nobre. O episódio, registrado pelas câmeras de TV no dia 2 de outubro, foi denunciado na Ouvidoria da Polícia Militar. A OAB-SP afirmou que enviou um ofício ao comandante-geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo e outro ao procurador-geral de Justiça.

Pesquisa qualitativa nacional realizada pelo Instituto Locomotiva no ano passado aponta que 84% das pessoas reconhecem que há racismo no País em relação aos negros, mas apenas 4% se consideram preconceituosos. “O racismo brasileiro não é o pior nem o melhor, mas ele tem suas peculiaridades, entre as quais o silêncio e o não dito, que confunde vítimas e não vítimas”, afirma o antropólogo Kabengele Munanga, da USP.

Para o casal Ana Paula Inácio Pereira e Gilmar Dias Inácio Pereira, o motivo da preocupação também é a frequência das abordagens policiais. Eles têm um Jeep Compass branco na garagem do condomínio localizado no Lausanne, zona norte da cidade. “Para a sociedade, a gente não deveria ter esse carro. Normalmente os outros carros passam e o nosso fica.” O problema não acontece só em São Paulo.

A pesquisa “Elemento suspeito: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro”, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania do Rio de Janeiro (Cesec), mostra que 63% das abordagens na cidade tiveram como alvo pessoas negras em 2021. As abordagens policiais ilustram o racismo velado na opinião de Rafael Alcadipani, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Este é um caso exemplar do racismo estrutural no Brasil.”

PATROA

A enfermeira aposentada Renilda Aparecida estava preparando o almoço quando tocou a campainha de sua casa em Tremembé, região do Vale do Paraíba, interior de São Paulo. Quando chegou ao portão, a senhora de 68 anos ouviu. “A senhora pode chamar a patroa?”. Cida, como é conhecida, era a dona da casa. “Eu fechei a cara e disse ‘A patroa sou eu’. Nem perguntei o que eles queriam”, conta.

Essa “confusão” acontece também com José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares. Ele conta que dificilmente é recebido como professor nos eventos. Situação semelhante foi vivida pelo ex-ministro da Igualdade Racial, Eloi Araújo. Durante um passeio com a família em Petrópolis (RJ), ele estacionou o carro e ficou esperando o retorno da filha e da mulher. Aí, ele ouviu: “Você pode estacionar meu carro”.

Mulheres negras sofrem ainda com a objetificação do corpo, que gera violência. Destaque da escola de samba Rosas de Ouro, Alessandra Vania conta que seu cabelo virou um símbolo de afirmação. “Os olhares não me diminuem. Quanto mais eles me olham, mais minha autoestima se eleva. Mas é uma afirmação e uma luta a cada dia”, afirma ela.