A proposta do governo de liberar as terras indígenas para projetos de  infraestrutura, mediante o pagamento de um royalty para os índios, caiu  como uma bomba na Fundação Nacional do Índio (Funai). Em memorando  enviado na terça-feira, 2, diretamente ao ministro da Justiça, José  Eduardo Cardozo, o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa,  foi taxativo ao se mostrar contra a medida provisória proposta pela Casa  Civil da Presidência da República. Costa fez ainda críticas duras sobre  a pressa do governo em tentar levar adiante uma decisão tão complexa  por meio de medida provisória.

O jornal “O Estado de S.  Paulo” teve acesso ao memorando que a Funai encaminhou ao Ministério da  Justiça. No documento, o presidente da fundação afirma diz que, após  analisar a medida, “verificam-se inúmeros vícios formais e materiais,  além de inconsistências na medida ora proposta, bem como se mostra  inoportuno o momento de sua proposição”.

Segundo a Funai, a  proposta, feita a toque de caixa, desrespeita ainda princípios  democráticos e de consulta aos povos que podem ser atingidos pelos  empreendimentos. “Não comungamos com o açodamento com que o assunto  passou a ser tratado”, afirma o presidente da fundação, acrescentando  que já estão em andamento discussões interministeriais sobre o assunto e  que estas “resguardavam com mais clareza os interesses dos indígenas,  sob o prisma da proteção de direitos e da dignidade da pessoa humana, e  foram, em sua maioria, descartadas na minuta ora analisada”.

No  comando da Funai há quatro meses, João Pedro Gonçalves da Costa  declarou ainda que, “em um governo popular e nitidamente democrático,  não nos parece configurar como boa prática a completa ausência de  participação da população que será diretamente afetada nesse processo de  construção normativa”.

O memorando chama a atenção para a  inconveniência do momento para tratar deste assunto, ao mencionar a  realização da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista”, prevista  para acontecer entre os dias 14 e 17 de dezembro. “A edição de um ato  de tal amplitude, com o completo alijamento das comunidades indígenas  nesse processo, certamente irá frustrar a referida conferência nacional e  causar grande comoção junto aos povos indígenas”, declara a Funai.

A  autarquia vinculada ao Ministério da Justiça afirma que a MP possui um  ”vício intransponível”, ao atropelar a consulta prévia e livre aos povos  indígenas, antes que qualquer empreendimento seja feito em suas terras.

O que está em jogo não é apenas o desrespeito aos povos  indígenas. O posicionamento contundente da Funai, na realidade, também  legisla em causa própria. A MP gestada na Casa Civil simplesmente ignora  a existência da fundação e passa a atribuir ao Congresso Nacional a  decisão de se fazer ou não determinado projeto que impacte terras  homologadas. A MP pode ser, portanto, uma pá de cal sobre a Funai, órgão  que tem sido cada vez mais esvaziado das decisões que afetam as  comunidades indígenas.

Atalho

Em seu  parecer, o presidente da Funai critica a estratégia de resolver o  assunto por meio de MP, uma vez que já existe projeto de lei que trata  do assunto em tramitação no Congresso. Pela MP, a decisão passaria a ter  validade imediata, enquanto passasse pelo crivo do parlamento.

“Não  nos parece, salvo melhor juízo, que a regulamentação da questão por  medida provisória seja a mais adequada ao caso, afinal, as medidas  provisórias devem ser utilizadas quando houver necessidade de um ato  normativo excepcional e célere, para situações de relevância e urgência,  não servindo para disciplinar matéria que possa ser aprovada dentro de  prazo estabelecido pelo procedimento legislativo previsto na  Constituição Federal”, afirma a Funai.

A fundação ressalta  que a MP não confere nenhum tipo de proteção aos povos indígenas. “Não  há qualquer menção a uma proteção especial aos povos isolados e de  recente contato, os quais, por motivos óbvios, não podem ser  consultados, mas terão que enfrentar as consequências do empreendimento,  expondo-se ao risco do próprio desaparecimento”.

A Funai  lembra ainda que a ideia de fazer repasses financeiros “não atende o  modo de relacionamento do Estado com as populações indígenas, na qual se  evita a transferência direta de recursos”, porque expõe os índios a  ”uma lógica de mercado que contraria a proteção constitucional, as suas  formas próprias de organização social, seus costumes e tradições”.

Sobre  a criação de um fundo para gerenciar os recursos, a Funai diz haver  ”grave descomprometimento com os princípios da participação democrática e  da autodeterminação dos povos indígenas”.

Ao concluir seu  posicionamento, João Pedro Gonçalves da Costa afirma que os apontamentos  são necessários para evidenciar o não atendimento de requisitos legais  pela MP, além da falta de diálogo com os povos atingidos, e a  ”desconsideração de todos os entendimentos formados ao longo dos últimos  anos sobre o tema, motivo pelo qual a Funai se manifesta contrariamente  à minuta da medida provisória”. A fundação cobra a retomada pública das  discussões sobre o assunto.

Procurada pela reportagem, a Casa Civil não se manifestou sobre o assunto até o fechamento desta reportagem.

O  jornal “O Estado de S. Paulo” teve acesso ao texto integral da MP. A  compensação financeira proposta corresponde a um índice de 2% sobre o  valor da terra. O cálculo desse valor levaria em conta uma fórmula que  considera o preço estimado da terra calculado pelo Incra, multiplicado  por  metro quadrado que seja afetado pela obra.

No caso  dos projetos hidrelétricos, há ainda a previsão de uma participação  financeira dos índios nas operações das usinas, com um adicional de 0,6%  sobre o preço da compensação financeira por conta do impacto em suas  terras. Esse valor deverá ser pago anualmente.