13/04/2005 - 7:00
COLÉGIO CARDINALÍCIO Em 2002, João Paulo II nomeou os derradeiros eleitores do atual conclave. Dos 117 cardeais, 114 foram indicados pelo próprio Karol Wojtyla
O atual momento da Igreja Católica, o interregno, o intervalo entre dois reinos, o período entre a morte de um papa e a escolha de um novo pontífice, pode ser comparado ao tempo, sempre difícil, em que as grandes empresas, tendo perdido o principal executivo, seu CEO, reúnem os conselheiros à cata de um outro líder. Pode soar comparação deslocada, para muitos é metáfora profana, mas é disso mesmo que se trata. Induzido a imaginar que características serão necessárias ao papa que sairá da Capela Sistina de Michelangelo, o headhunter Robert Wong, da consultoria Partnership & Learning, não vacila. ?As mesmas do CEO de uma empresa do primeiro time?, resume. A saber: aquilo que, no campo da gestão, é conhecido como o triplo ?C?, de comprometimento, comunicação e confiança. ?São qualidades que João Paulo II exibia, e que seu sucessor deve ostentar?, diz Wong. Depois do papa polonês, não existe mais espaço para pontífices recatados, avessos às câmeras, colados ao chão ocre de Roma. Criou-se um paradigma e não há mais como afastá-lo. A questão é que o novo CEO da Igreja Católica, mesmo que adequado, encontrará uma multinacional, a maior delas, presente em 270 países e com 1 bilhão de simpatizantes, completamente diferente da que Karol Wojtyla assumiu em outubro de 1978. Não se trata, portanto, apenas de uma mudança de liderança ? mas também de administração. A ilação ajuda a entender como funciona o Vaticano e, na outra ponta, pode sim oferecer lições às companhias que lidam diretamente com os consumidores, em prateleiras de produtos populares.
O poder Pela primeira vez na história, em novembro de 2002, um papa falou no Parlamento italiano. Serviu de sagração às suas vitórias políticas
O Concílio Vaticano II, no início dos anos 1960, construído debaixo da mitra de João XXIII, estabeleceu o conceito da colegiabilidade, no tom de uma célebre definição do papa Máximo IV, para quem ?a Igreja foi confiada a Pedro e aos apóstolos, e não à Cúria?. O Concílio criou o Sínodo dos Bispos, grupo que formaria uma espécie de gabinete destinado a governar em parceria com o pontífice. Ao longo de seu mandato, João Paulo II minou o Sínodo, transformou-o num órgão fantoche, apagado. O que seria seu board executivo, o conselho de administração, virou um fantasma sem muita utilidade no cotidiano do Vaticano. A holding católica, formada pelas dioceses mundo afora, transformou-se em uma pálida rede de filiais, sem palavra, submetidas ao ímã rigoroso de Roma. Nada mais antigo e avesso às inovações e aos passos modernos de gestão. ?Hoje, o que o catolicismo necessita é de relações mais democráticas, com real participação do Terceiro Mundo?, diz José Oscar Beozzo, do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular, de São Paulo. ?Há urgência nesta mudança de estrutura.? Um respeitado teólogo americano, Tom Reese, da revista America, nota que, ao ritmo de um antigo mantra de marketing, também na Igreja Católica deve-se ?agir localmente mas pensar globalmente?. Na aparência, foi o que fez João Paulo II, o papa da globalização. ?Mas a rigor, em suas viagens, ele desmontou as ramificações católicas, deixou tudo, absolutamente tudo centralizado no tacão de Roma?, diz Beozzo. E Roma, na verdade, foi o tempo todo apenas o lugar de onde emanavam as diretrizes, as ordens. ?João Paulo II foi o mais contraditório papa do século XX?, diz o teólogo e padre suíço Hans Küng, cuja autoridade foi subtraída pelo Vaticano em 1979. ?Externamente ele lutou contra guerras, mas internamente sua política anti-reformas mergulhou a Igreja Católica numa época de perda de credibilidade.? Nesta postura autocrática, muitas vezes fechou-se os olhos aos problemas internos de caixa. Na sede do catolicismo, no Estado do Vaticano, na Santa Sé, deu-se um crise econômica, resultado de uma outra crise, moral ? e este é um outro desafio, imenso, do sucessor de Wojtyla, um rombo financeiro que precisa ser saneado.
Em 2003, houve um déficit de 9,5 milhões de euros, fruto de uma queda no ritmo das doações, principal fonte de renda. Ela está diretamente relacionada ao escândalo dos padres pedófilos nos Estados Unidos, em 2001. Os americanos representam 25% dos 203 milhões de euros que entram todos os anos no Vaticano. Ultimamente, contudo, a torneira foi fechada, porque muitas dioceses da terra de George W. Bush, falidas, deixaram de remeter seu quinhão. Elas tiveram que desviar o dinheiro, cerca de US$ 475 milhões, como indenização às vítimas de abusos, mais de 10 mil pessoas. Entre os padres dos EUA, formados desde 1950, 4% deles teriam cometido o crime. Foi um escândalo, sem dúvida, mas pouco se falou a respeito de seus resultados financeiros ? e esta conta aparecerá agora, ao lado de outras vitais para os mercadores da fé. Para fazer caixa, o Vaticano vende perfumes e relógios caros, cigarros sem impostos a preços 30% mais baixo que do lado de fora e gasolina num posto de duas bombas 50 metros a oeste da basílica, também a preços camaradas.
Há, ainda, no funcionamento da Igreja como empresa, aquela legada por João Paulo II, se seguirmos a comparação, um evidente problema de relação com os clientes e consumidores. O pontífice esmagou os avanços promovidos pelo Concílio Vaticano II. Wojtyla calou bispos politizados, exigiu que freiras abandonassem as calças que usavam por baixo dos hábitos e insistiu em dizer que as camisinhas são malignas, fazem parte de uma ?cultura da morte?, mesmo quando usadas para impedir uma infecção mortal, a Aids. Dá-se o desencontro porque fiéis e religiosos, cada um a sua maneira, gostam de política, usam calças em vez de saias e acreditam na eficácia dos preservativos. Pode-se dizer, sem receio de exagero, que o Vaticano tenta distribuir aparelhos de televisão preto e branco para um mundo que há tempos aderiu à cor. Mas nem sempre, nas duas décadas de pontificado, foi assim.
Houve um momento, em 1981, quando o sindicato polonês Solidariedade atingia o auge de sua força, que Karol Wojtyla percebeu a necessidade de entregar aos fiéis um outro produto, uma postura que aproximasse a religião dos necessitados. Em 14 de setembro daquele ano ele divulgou sua quarta encíclica, escrita em polonês e rascunhada na cama do hospital onde se recuperava do atentado. A Laborem Exercens (Sobre o Trabalho Humano) foi uma tentativa ambiciosa de João Paulo II de erguer um manifesto do trabalhador forjado no cristianismo, e não no marxismo. Proclamava, ao longo de 21 mil palavras, a prioridade absoluta do trabalho sobre o capital, quer no sistema capitalista quer no socialismo. Deslocava o foco da voracidade do mercado,
do liberalismo econômico, e o punha nas mãos dos homens.
Documento histórico, a Laborem desembarcou nas dioceses de todo o mundo com força equivalente ao histórico e-mail enviado por Bill Gates em maio de 1995 a seus executivos, no qual o dono da Microsoft anunciava a guinada da empresa na direção da web, intitulado The Internet Tidal Wave, algo como um tsunami na direção da rede eletrônica. Gates nunca mais desviou dessa rota, e hoje o Windows roda em 720 milhões de computadores, todos colados ao Explorer, o programa da Microsoft que dá acesso à internet. João Paulo II, contudo, rapidamente abandonou a encíclica, na medida em que solapava as estruturas autônomas da Igreja, as conferências episcopais, caras às idéias sociais. ?A Laborem Exercens representou um dos raros instantes em que Roma escutou os anseios do Terceiro Mundo?, diz o teólogo Beozzo. ?Ao abandoná-la, o papa retomou a postura monárquica.? Trata-se, aqui, de lembrar da encíclica do trabalho, porque ela equivale às grandes ?missões? estabelecidas pelas empresas de porte, com responsabilidade social. Engavetá-la, como ocorreu, tirou o Vaticano de seu caminho, afastou o rebanho. O desafio, agora, é saber que homem alçar ao comando da mais internacional das multinacionais. A comoção dos funerais de João Paulo II, a maior de todos os tempos no catolicismo, um desses eventos que se tornam míticos, representa o fim de uma era, ancorado no carisma abissal de um gênio da comunicação.
A partir do próximo dia 18, com o início do conclave, a Igreja começará a entender para onde vai, e saberá se o seu catálogo de ofertas ainda fascina homens e mulheres. Em 1978 havia 700 milhões de católicos no planeta ? há, hoje, 300 milhões a mais. Eram, contudo, 17,75% da população mundial há 26 anos, e atualmente são 17,3%, numa queda pequena mas educativa. No Brasil, segundo o IBGE, 90% da população se declarava católica há duas décadas ? agora são 85%, e quase toda sangria deu-se na direção dos evangélicos, como ocorreu com a ministra Marina Silva, antiga militante das Comunidades Eclesiais de Base. Cabe, para usar uma outra expressão corporativa, uma reengenharia. Nas palavras do professor inglês Terry Eagleton, da Universidade de Manchester, João Paulo II pôs fim ?ao pluralismo, ao relativismo moral, às missas relaxadas, acompanhadas por hambúrgueres e
Coca-Cola?. Se vale realmente imaginar a Igreja Católica como uma imensa corporação, é hora de mudar seus ritos e sobretudo seu modo de administrar ? sem ferir os dogmas, legítimos embora polêmicos, e tampouco a memória do papa peregrino. Não basta que o Vigário de Cristo, o Príncipe dos Apóstolos, o Patriarca
do Ocidente seja ultraconservador como Josef Ratzinger, o alemão conhecido como ?panzerkardinal?, um tanque de batina, ou moderado como Dionigi Tettamanzi, arcebispo de Milão, dois dos nomes mais citados para aparecer à janela depois da fumaça branca e do badalar dos sinos. A corporação Vaticano, ao fim da era João Paulo II, pede uma revolução.
SEIS POSSÍVEIS SUCESSORES DE JOÃO PAULO II
Dionigi Tettamanzi,
Itália, 70 anos
? Arcebispo de Milão, especialista em questões biomédicas e profundo conhecedor da Santa Sé. Para muitos, tem o ar simpático de João XXIII
Francis Arinze,
Nigéria, 72 anos
? Tem excelente diálogo com o Islã e com os budistas, é celebrado por seu tom conciliador e moderado. Seria o primeiro Papa negro da História
Josef Ratzinger,
Alemanha, 77 anos
? Conservador à medula, conhecido como ?panzerkardinal?. É o atual prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício
Oscar Maradiaga,
Honduras, 62 anos
? Domina dez idiomas, ensina matemática e física, adora aparecer na mídia. Foi presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano
Cláudio Hummes,
Brasil, 70 anos
? Arcebispo de São Paulo, socialmente progressista, ligado aos problemas do Terceiro Mundo, mas conservador em questões morais
Giovanni Batista-Ré,
Itália, 71 anos
? Prefeito da Congregação dos Bispos, era um dos homens mais próximos de João Paulo II. É o líder da tendência moderada
OS CAIXAS DA SANTA SÉ E DA CIDADE DO VATICANO
O tamanho do déficit
O comando da Igreja Católica registrou em 2003 um déficit de 9,5 milhões de euros ? no ano anterior ele chegou a 13,5 milhões de euros. Houve uma diminuição no rombo, é verdade, mas ele ainda preocupa os administradores da Santa Sé e da Cidade do Vaticano.
Os motivos do vermelho
O rombo está relacionado à crise da Igreja Católica diante do crescimento das religiões evangélicas. As doações, principal fonte de renda, caíram de 85,4 milhões de euros para 79,6 milhões de euros.
A crise americana
Os americanos são os principais doadores, com 25% do total, seguido das igrejas e dos fiéis da Alemanha. Os recentes escândalos de pedofilia nos Estados Unidos levaram à bancarrota algumas dioceses ? e, diante desse cenário, houve queda também nas ofertas.
A austeridade necessária
O ministro das finanças de João Paulo II, o cardeal italiano Sérgio Sebastiani, disse recentemente: ?É preciso austeridade?. Em 2003, entraram 203,6 milhões de euros e saíram 213,2 milhões de euros.
O mercado imobiliário
Diante da escassez de doações, o Vaticano faz dinheiro com a venda de selos e com o turismo, prioritariamente. Um caminho de entrada de dinheiro são os aluguéis dos prédios cedidos por Mussolini à Igreja Católica em 1929, como indenização pelos confiscos do passado. Os imóveis geram 22,4 milhões de euros anuais.