16/03/2025 - 8:45
Desde dezembro de 2024, documentos têm que informar que mortes foram violentas e causadas pelo Estado. Mais do que alento e reparação para as famílias, especialistas dizem que mudança implica reconhecimento de crimes.Foi através de uma notícia na TV que Wladir Costa Danielli, à época com 5 anos, soube da morte do pai, Carlos Nicolau Danielli, durante a ditadura militar. Ele era um dos líderes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e foi preso em São Paulo no dia 28 de dezembro de 1972, três dias antes de ser assassinado.
“Eu era muito pequeno, mas tenho essa lembrança. Minha mãe estava na sala assistindo ao jornal e quando viu a notícia da morte do meu pai, ela deixou cair no chão o copo que segurava na mão. O barulhou chamou a minha atenção. Corri para ver o que aconteceu, e num primeiro momento ela disse que um amigo muito querido havia falecido”, recorda Wladir.
A versão para a morte de Carlos Danielli divulgada à época pelos órgãos de segurança era de que ele havia sido morto em um tiroteio com policiais. Porém, décadas depois as investigações concluíram que ele foi torturado e morreu nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Exército, em São Paulo, um dos principais órgãos de repressão política durante a ditadura.
Mesmo após o esclarecimento da morte de Danielli, a certidão de óbito dele só foi corrigida em janeiro deste ano, com o reconhecimento de morte violenta causada pelo Estado brasileiro.
“Me sinto justiçada, pois o Estado está reconhecendo tudo o que fez contra meu avô, e a esperança é de que as pessoas possam de fato conhecer a história da ditadura, para que ela não se repita”, afirma Laís de Araújo Costa Danielli, neta de Carlos.
A correção e emissão de uma nova certidão de óbito foi possível após o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinar, em dezembro de 2024, que os cartórios têm o dever de reconhecer e retificar as certidões de óbito de todos os mortos e desaparecidos vítimas da ditadura militar reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A emissão das novas certidões é gratuita e pode ser solicitada pelos familiares das vítimas ou qualquer pessoa.
“É uma reparação histórica porque o Estado brasileiro está assumindo que torturou, matou e sumiu com corpos”, enfatiza o aposentado Wladimir Costa Danielli, também filho de Carlos.
Pela nova regra, as certidões de óbitos de 202 mortos durante a ditadura terão como causa mortis: “Morte não natural, violenta, causada pelo Estado no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.
Já os 232 desaparecidos durante o regime militar terão direito a um atestado de óbito. E todos os registros terão que informar que essas pessoas foram vítimas da violência cometida pelo Estado.
Até então, as certidões de óbito só eram corrigidas ou emitidas aos familiares dos desaparecidos depois de batalhas na Justiça.
Foi assim que, em 2019, a advogada Altair de Almeida, de 68 anos, finalmente obteve a certidão de óbito do irmão Joel Vasconcelos Santos, um dos “desaparecidos” do regime. Ele foi preso no Rio de Janeiro pela repressão em 1971, aos 21 anos.
“É muito importante que haja essa reparação por parte do Estado. De certa forma, acalenta a família. E mais do que isso: é uma necessidade para despertar [para] o assunto, para que não ocorra novamente. Tem muita gente que ainda admira e idolatra torturador”, enfatiza a advogada.
Segundo o relatório da CNV, a prisão de Joel foi justificada como suspeita de tráfico. No entanto, o rapaz apenas levava cartazes contra a ditadura e ingressos para o espetáculo “O Rei da Vela”, montagem do Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa baseada em obra de Oswald de Andrade.
De acordo com documentos do Exército do Rio de Janeiro, Joel foi interrogado entre 15 e 19 de março daquele ano. O corpo dele nunca foi entregue à família.
“Minha mãe morreu lutando para encontrar meu irmão. Na época do desaparecimento, todos os dias ela ia até a escadaria da Cinelândia com a foto dele. Ela nunca se calou, participou de movimentos contra a ditadura e lutou até o fim”, conta Altair.
Reparação da história
Mais do que alento e reparação do Estado para as famílias das vítimas da ditadura, especialistas afirmam que a retificação das certidões de óbito significa uma reparação na história do país, com o reconhecimento dos crimes cometidos pelo regime militar.
“O Estado tinha técnicas para ocultar a verdade e encobrir os crimes. Além dos militares que agiam na tortura, haviam médicos que produziam e assinavam os atestados com explicações falsas para as mortes, colocando que havia sido suicídio, atropelamento, entre outras causas”, explica Carla Osmo, professora de direito da Unifesp.
A ditadura durou de 1964 até 1985, mas quatro décadas depois ainda existe uma necessidade de lidar com os resultados das graves violações de direitos humanos da época: assassinatos, prisões arbitrárias, censura e repressão de dissidentes, de povos indígenas e de pessoas pobres.
“Essa reparação é importante para que a sociedade reconheça o que houve na época da ditadura, e assim haja uma reparação na história, já que essas vítimas por muitos anos foram vistas como criminosas, como se elas é que estivessem fazendo algo de errado, justificando suas prisões e tudo o que passaram”, acrescenta Osmo.
Apuração dos crimes
Para apurar os crimes cometidos pelo Estado e mostrar para a sociedade os horrores do período foi criada, em 2011, a Comissão Nacional da Verdade.
O relatório final, entregue em 2014, apontou 377 responsáveis por assassinatos e torturas e pediu a revisão da Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos entre 1969 e 1979.
Para Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, as retificações nas certidões de óbitos das vítimas da ditadura são mais uma prova de que o Estado cometeu crimes, podendo também resultar em reparação material, além da simbólica.
“O documento é uma prova material que reforça o envolvimento do Estado nos crimes e pode ser usado para reforçar processos judiciais. Os militares envolvidos, se condenados criminalmente, por exemplo, podem perder os benefícios dados a eles, como as aposentadorias e as pensões destinadas aos seus familiares, caso já estejam mortos”, explica.
Na última década, o Ministério Público Federal ingressou com 53 ações criminais pedindo a condenação de agentes que cometeram crimes durante a ditadura militar.
O sucesso do filme Ainda Estou Aqui, que ganhou Oscar de melhor filme internacional, deu novo fôlego ao tema e fez com que o Judiciário voltasse a olhar para a questão.
No mês passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que vai analisar novamente a validade da Lei da Anistia no caso dos cinco militares acusados pela morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, retratado no longa-metragem. A decisão fixará jurisprudência para o julgamento de outros processos da ditadura.