Hoje aos 42 anos, Eliane Aparecida de Paula se lembra de ter descoberto o que era sofrer racismo ainda na infância, em palavras, gestos e olhares. O preconceito levou a cozinheira a estar sempre alerta. Em um prédio nos Jardins, no centro expandido da cidade de São Paulo, ela foi agredida enquanto esperava um carro por aplicativo após sair de um trabalho e afirma ter sido vítima de insultos racistas.

À reportagem, Eliane conta ter procurado dialogar com a mulher que teria feito as ofensas em um condomínio na Rua Oscar Freire. Imagens de uma câmera de segurança interna mostram que uma mulher – apontada pela defesa da cozinheira como moradora – aborda Eliane, que estava sentada em um banco, e comete agressões com joelhadas, puxões de cabelo e batidas de cabeça contra a parede.

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A situação foi registrada como injúria racial e lesão corporal no 78º DP (Jardins) em outubro passado. Na última quinta-feira, 31, Eliane fez uma representação na polícia, o que é necessário em casos de crime de ação condicionada, após obter o vídeo das agressões por meio de ordem judicial.

Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), um inquérito foi instaurado no mesmo dia para a apuração do caso, realização de diligências e análise das imagens, a fim de “esclarecer todas as circunstâncias do fato”.

Reveladas no Jornal Nacional de sexta-feira, 1º, as agressões ocorreram por volta das 17h30 de 22 de outubro de 2021, porém as imagens foram cedidas pelo condomínio apenas após determinação judicial no fim de março. No vídeo, Eliane se senta em um banco próximo da saída do edifício durante aproximadamente 3 minutos até que é abordada pela suposta moradora, que fala e gesticula por cerca de um minuto.

Depois, a mulher se afasta em direção à porta. Eliane se aproxima e é empurrada. Elas trocam palavras e, em determinados momentos, a suposta moradora novamente gesticula e grita. Após ser impedida de sair, puxa os cabelos da cozinheira, que é encurralada, leva cerca de oito joelhadas e tem a cabeça batida contra a parede.

Neste momento, o porteiro chega ao local e consegue parar a agressão, sendo também atingido pela mulher. Eliane retorna, então, ao banco em que aguardava o carro.

À reportagem, a cozinheira contou ter tentado dialogar com a mulher. “Ela dizia ‘que negra esquisita'”, comenta. “Tentei ignorar no primeiro momento, fazer que não era comigo”, recorda-se. “Tentei explicar para ela, conscientizar do ato que estava fazendo”, continua. “Perguntava o que eu estava fazendo ali, para quem eu trabalhava, e mesmo assim eu tentava conscientizar. E ela continuava.”

Eliane disse à suposta moradora que aquela postura era racista. A agressora, conforme a versão da cozinheira, teria respondido ter amigas negras e insinuado que Eliane queria “causar” e conseguir dinheiro. “Foi muito forte tudo o que ela falou”, conta.

Após ser empurrada, Eliane decidiu impedir que a agressora deixasse o local, a fim de aguardar a chegada da polícia. “Falo que ela cometeu crimes, o do racismo, por ter falado coisas horrorosas, que iria acionar a polícia. Falo firme que ela vai ser presa, que vou chamar a polícia.” Segundo ela, a suposta moradora dizia que uma queixa na polícia “não daria em nada”.

Em locais que está pela primeira vez, Eliane costuma até mesmo pedir para que o cliente a encontre na portaria para evitar algum tipo de discriminação, mas não imaginava que passaria por situação dessas no edifício da Oscar Freire, no qual mantém um cliente há cerca de seis anos. Naquele dia, decidiu esperar o carro dentro do condomínio por causa de relatos de furtos e roubos no entorno.

“Desde criança, a gente sofre. Os primeiros, a gente não sabe o que é, porque não sabe o que é racismo. Com livros, informações, passa a entender e perceber os olhares, o comportamento das pessoas, a perceber o racismo em lojas. São inúmeras situações. Pelo menos uma vez por semana tem uma situação”, conta. “Lamentavelmente, faz parte do cotidiano (da pessoa negra)”, afirma. “Agora, no nível dessa situação que vivi (no edifício da Oscar Freire), jamais imaginei viver.”

Mesmo no caso mais grave que sofreu, diz que algumas pessoas duvidaram da situação e até trataram o caso como “vitimismo”. “Sou uma pessoa muito guerreira, trabalho muito. Perdi um filho em um acidente de trânsito há um ano e quatro meses. Eu não estava para buscar agressões.”

Agora, espera que a “justiça seja feita”. “Que uma sociedade como a nossa possa entender que racismo é crime, que minha cor não me diferencia de ninguém”, comenta. “Queria que ela (a agressora) entendesse que isso me fez muito mal, que faz mal para as pessoas.”

Ela conta que até evitou falar da situação. “Quando decidi falar, decidi pelos outros, não por mim. Minha dor é grande, estava me fazendo mal ficar calada”, relata. Até o momento, diz não ter conseguido ver as imagens daquele dia: “Não tive condições de assistir tudo. Vem tudo na minha cabeça.”

Advogado de Eliane no caso, Theodoro Balducci argumenta que o vídeo prova a ocorrência dos crimes. “Está muito claro. Não há nenhuma dúvida. E não foi um simples tapa, um chute, foram várias joelhadas, cabeçadas na parede, houve um empurrão. Temos um contexto muito forte.” Ele comenta que a lesão corporal pode ter pena de três meses a um ano, enquanto a injúria racial de um a três anos de reclusão, além da multa.

A reportagem não conseguiu contato com a suposta moradora.