30/07/2009 - 7:00
Carlos Miele: “A administração é o nosso calcanhar de aquiles”
A crítica internacional o reverenciou ao comentar suas criações. “Ele transita entre a austeridade e a exuberância”, disse Virginie Mouzart, do francês Le Figaro. “Dificilmente algum look passou sem ter um extraordinário trabalho manual”, decretou Suzy Menkes, do International Herald Tribune. Na última conferência internacional do mercado de luxo, a 5ª edição da Financial Times Business of Luxury Summit, que aconteceu em Montecarlo e da qual participaram titãs da indústria como o francês Bernard Arnault, dono do conglomerado LVMH, sua grife foi apresentada como a “challenger brand” (marca desafiadora, numa tradução livre). O estilista Carlos Miele, 45 anos, ainda foi convidado para assumir o posto de diretor de criação da italiana Pucci – pedido negado -; possui lojas em Nova York e Paris; veste divas como a atriz Eva Longoria e as cantoras Jennifer Lopez e Beyoncé, entre outras; e ainda é dono de um conglomerado que reúne 146 lojas da grife M.Officer, que, de acordo com estimativas de mercado, fatura cerca de R$ 300 milhões. Nesse mundo fashion, no qual os egos são inflados ao quadrado, Miele poderia dizer que é o cara. Ele, porém, calçou as sandálias da humildade e fez um mea-culpa.
Loja da grife mais exclusiva do grupo fica no descolado bairro de Meatpacking District, em Manhattan
“O nosso calcanhar de aquiles é a administração da empresa”, revelou com exclusividade à DINHEIRO. “Nos últimos oito anos, fiquei 70% do meu tempo nos Estados Unidos, longe dos negócios, e os líderes da minha empresa se acomodaram. Criaram-se ilhas de poder que nos deixaram muito atrasados em processos de gestão.”
É raro, quase impossível, encontrar um empresário que assuma os erros publicamente. O estilista não só fez isso como tenta encontrar meios de recuperar terreno. Na terça-feira 28 de julho, ele se reuniu com toda a diretoria em seu escritório na loja do shopping Cidade Jardim para pôr todos a par das mudanças na empresa. “Estou procurando um coach e também um líder”, diz. As mudanças dentro da companhia já começaram. “Para você ter uma ideia, só agora estamos implementando um software de gestão que todo o setor de moda usava há anos.” Outra medida que Miele pretende tomar é mudar as políticas dentro da empresa. “Sempre promovíamos os que tinham mais tempo de casa. Meus líderes não treinaram sucessores e isso foi ruim demais, poderíamos estar melhor hoje. Por isso, vamos implantar a meritocracia, coisa que a AmBev faz há tempos.” O que pode parecer uma questão isolada é um problema mais comum do que se pensa dentro das organizações. “Quando o dono fica muito tempo fora e não tem um sucessor, a empresa fica acéfala. E, se os executivos focam apenas no dia a dia, esquecem de enxergar no longo prazo”, diz João Mendes de Almeida, sócio da Vicky Block Associados, consultoria especializada em gestão e liderança.
Flagship da marca, em São Paulo, foi inaugurada no badalado shopping Cidade Jardim
Para que isso não aconteça mais e para pôr em prática seus ambiciosos planos de expansão, Miele está disposto a vender parte de sua empresa. “Estou conversando com quatro grupos internacionais. Até o fim do ano, tomo uma decisão”, diz ele. De fundos de private equity, diz ele, já recebeu diversas propostas. “Mas não vendo para eles de jeito nenhum. Eles são oportunistas, querem resultado no curto prazo e não têm comprometimento com o futuro da empresa.” O objetivo é ter mais tempo livre para criar e trilhar o mesmo caminho de ícones da moda como o italiano Giorgio Armani e o americano Ralph Lauren, que possuem diversas marcas – de roupas, óculos e até móveis – sob o mesmo guarda-chuva. “Quero criar um lifestyle com a cara do Brasil”, explica. Os primeiros passos já estão em curso.
Ainda neste ano, ele vai inaugurar a M.Officer Kids, com roupas para crianças, e está conversando com multinacionais para criar linhas de óculos, sapatos e bolsas que serão lançadas simultaneamente no Brasil e no Exterior. Há planos também de vender lingeries, moda praia, perfumes – tudo com o seu nome. “Ele terá um trabalho duro pela frente porque para fazer isso é necessário muito dinheiro e força de marca”, diz André Robic, diretor do Instituto Brasileiro de Moda.
A loja de Paris está localizada em um dos grandes templos da moda francesa: na rue Saint-Honoré
Expulso de seis escolas dentre as nove instituições em que estudou e formado em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas, Miele é visto como uma pessoa de personalidade difícil. “Ele muda de humor de uma hora para a outra”, diz uma ex-funcionária. Ele mesmo reconhece que seu temperamento às vezes atrapalha. “Não gosto de reuniões, de muita gente, prefiro trabalhar sozinho”, conta. E isso, no fundo, pode ser refletido nos resultados da companhia. Mas, o que poderia ser nocivo para empresas de qualquer outro setor, torna-se um trunfo para ele. É nos momentos de introspecção que nascem as suas grandes criações. “A deficiência da administração é compensada pela força das nossas marcas”, diz ele. Além da M.Officer, um ícone de jeanswear, sonho de consumo principalmente na década de 90, o estilista assina vestidos de alta-costura da grife Carlos Miele, que chegam a custar R$ 7 mil; também desenvolve vestidos da grife Miele, com preços médios de R$ 2,1 mil, e recentemente lançou a marca de jeans premium Miele Denim, cujas calças saem por R$ 468. “O trabalho dele é muito bem-visto no Exterior”, diz a crítica de moda Erika Palomino. “Ele conseguiu resolver uma equação exótica ao unir matéria-prima brasileira com design voltado para o mercado americano. Com isso, conquistou as celebridades e as mulheres mais maduras com mais dinheiro.”
No Brasil, a M.Officer ainda tem uma excelente imagem junto aos consumidores e um grande fluxo de clientes nas lojas. Mas consultores observam- na com cautela. “Parece que a empresa ficou no piloto automático”, diz Robic, do IBModa. “Ele deixou os circuitos dos desfiles nacionais e isso prejudicou a percepção da marca.” A saída da M. Officer da passarela nacional se deve a uma famosa briga com Paulo Borges, o homem que comanda o São Paulo Fashion Week, e também de atritos com os críticos brasileiros. “A tendência da brasilidade foi antecipada por mim e todos criticavam isso”, diz ele. “Naquela época, ninguém achava legal fazer um desfile com performance do Hermeto Pascoal, era um mercado muito colonizado. Para você ter uma ideia, certa vez o Paulo Borges trouxe modelos loiras da Argentina para desfilar.” Paulo Borges, por sua vez, rebate. “Isso aconteceu, em 1998, num desfile que produzi para a Zoomp. Foi a grife que pediu, era também mais barato. Não dá para misturar esse caso específico com a questão da brasilidade”, diz Borges. “O Paulo Borges fez um livro de moda brasileira no qual eu não apareço”, diz Miele. Borges, novamente, contesta. “Não fiz esse livro sozinho, também participaram o João Carrascoza e o Giovanni Bianco. Eles conversaram com o Miele e ele não quis participar. O Miele tem complexo de perseguição, precisa de um antagonista.”
Em 1997, Miele chamou Ranimiro Lotufo, modelo com uma prótese na perna, para ser o garoto-propaganda da M.Officer. Em 1999, o inglês Alexander McQueen fez o mesmo
O ditado popular de que até um “chute te empurra para frente” cai como uma luva na história de Miele. Entre o fim dos anos 1990 e o começo dos anos 2000, seus desfiles, muitos deles inspirados na miscigenação brasileira e em temas indígenas, foram massacrados pela crítica. O estopim, diz ele, foi a partir de 1997, quando convocou Ranimiro Lotufo, um ex-modelo que havia perdido uma das pernas em um acidente de paraglider, para ser o garoto-propaganda da M.Officer. “Um monte de gente saiu dizendo que era sensacionalismo”, conta. “Só que, em 1999, dois anos depois, o Alexander McQueen pôs uma deficiente física na passarela e todos aplaudiram. Quando me deparei com essa situação, pensei: o que estou fazendo no Brasil?”, indigna-se Miele. Foi o que o levou a mostrar o trabalho no Exterior – primeiro em Londres e depois em Nova York. “É a capital do mundo, é ali que tudo acontece”, conta Miele, dizendo que já recusou convites para expor seu trabalho nas semanas de moda de Milão e Paris. O fato é que, depois de quase uma década trabalhando arduamente em coleções e com a ajuda das melhores agências de relações públicas dos Estados Unidos, ele conquistou a América, quiçá o mundo. Quando deparado com isso, Miele dispara. “Eles podem até concordar que eu estava certo, mas nunca vão me perdoar por obrigá-los a concordar”, comenta sobre os seus desafetos.
Apesar da estratégia de internacionalização ter sido um sucesso, com suas marcas vendidas nas principais lojas de departamento do mundo como, por exemplo, a londrina Harrods e a americana Saks Fith Avenue; de ter cravado loja no badalado Meatpacking District, em Manhattan, e de ter cavado um espaço na tradicional Saint-Honoré, em Paris, tudo foi feito com base na intuição. “Nunca planejei nada”, diz Miele. Talvez esse modo de administrar tenha sido o seu segredo do sucesso. “O setor da moda tem muitas particularidades e é difícil encontrar gente que seja qualificada para administrar”, diz Amir Slama, ex-dono da grife de moda praia Rosa Chá e presidente da Associação Brasileira de Estilistas. Pois Miele procura alguém com esses conhecimentos e características. “Estou em busca de um líder para a minha empresa.” Será o melhor modo para esse estilista-empresário, que ainda assina videoarte, brinca de arquiteto e encontra tempo para fotografar, fazer o que melhor sabe: criar.
A visão de Miele
O futuro da empresa
“Quero criar um grupo como Giorgio Armani e Ralph Lauren. Fundar novas marcas mais segmentadas. Por isso, já estou em conversações com grupos para licenciar óculos, sapatos e bolsas Carlos Miele. Todos serão lançados simultaneamente no Exterior e no Brasil. Na sequência, pretendo lançar perfumes. Também estou de olho em lingeries e moda praia. Quero criar um lifestyle com a cara do Brasil. Afinal, acredito que o Brasil vai ser mais desejado que o country da Ralph Lauren e do que a moda italiana de Armani. Isso porque a cultura brasileira é a da miscigenação, é mais contemporânea, tem a ver com a globalização.”
Administração
“Esse é o nosso calcanhar de aquiles. Nos negócios, as coisas foram acontecendo por instinto, intuição, nunca planejei nada. Nos últimos oito anos, fiquei 70% do meu tempo nos Estados Unidos e deixei muito da administração de lado. Existe um software de gerenciamento que todo mundo usa no setor da moda e só agora estamos implantando na empresa. Ou seja, estávamos atrasados. As pessoas cresciam lá dentro devido ao tempo de casa, não pela meritocracia. Isso fez com que muitos se acomodassem. Poderíamos estar mais avançados hoje. Muito disso é minha culpa, fiquei muito afastado da empresa. Aí, meus líderes se acomodaram e não treinaram sucessores. Criaram-se ilhas de poder e de hierarquia dentro da empresa, isso foi ruim demais.”
Possível venda
“Tenho sido sondado por grandes grupos internacionais. Na verdade, são quatro e até o fim do ano tomo uma decisão. Só não abro mão do controle. Quero me associar com pessoas que conhecem o mercado de moda. Fundos de private equity me sondaram diversas vezes, mas não quero nem saber. Eles são oportunistas, querem o resultado no curto prazo para depois vender a marca e lucrar. Eles não têm comprometimento com a grife e com a história da marca.”
A crítica nacional
“O bom de ter trabalhado no Brasil é que eu ganhei um estômago que me preparou para críticas negativas. Passei por um corredor polonês aqui. Lá fora daqui, as críticas ao meu trabalho sempre foram superpositivas.”
Carreira internacional
“Minha ambição é internacional, quero ver meus limites fora do Brasil. Já fui convidado para apresentar as minhas coleções nas semanas de moda de Paris e Milão, mas não quis. Acho que Nova York é a capital do mundo, une o centro econômico, que é Wall Street, com várias culturas.”