23/12/2018 - 7:32
Na manhã do dia 6 de dezembro, Damares Alves, como de costume, auxiliava seu então chefe, o senador Magno Malta (PR-ES), na condução da CPI dos Maus Tratos no Senado. A comissão investiga crimes contra crianças e adolescentes, assunto caro à evangélica Damares. Ela, no entanto, deixou a sala antes do fim da reunião. Quando Malta encerrou as discussões, voltou ao gabinete, e encontrou sua assessora dando entrevistas como futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Segundo amigos próximos, Damares foi surpreendida pelo convite de Jair Bolsonaro e decidiu aceitá-lo porque entendeu que se tratava de um “chamado divino”. A decisão foi previamente discutida em seus grupos de WhatsApp. Malta sabia do interesse do presidente eleito pela sua assessora, mas levou um susto com o anúncio. A história acabou estremecendo a relação entre os dois.
Apesar de já se conhecerem dos corredores da Câmara, foi Malta quem aproximou Bolsonaro de Damares. O senador foi um dos políticos mais próximos do presidente eleito durante a campanha. A assessora costumava acompanhar o chefe em compromissos com o então candidato. E ficou amiga da futura primeira dama, Michelle Bolsonaro, evangélica como ela. Há quem não tenha dúvidas de que a indicação para o ministério foi sugestão da mulher do presidente. Malta não conseguiu um cargo no novo governo.
Assim que seu nome foi anunciado, internautas resgataram vídeos de palestras em igrejas, em que Damares contava que viu Jesus em um pé de goiaba. A história, contada fora de contexto, levou a uma onda de memes que irritaram o presidente eleito. No Twitter, Bolsonaro disse ser “extremamente vergonhoso debocharem do relato”.
A futura ministra acabou esclarecendo que a aparição havia se dado durante um quase suicídio, após sofrer sucessivos estupros quando criança, cometidos por pastores. Para o grande público, tudo foi uma grande e chocante novidade, mas o assunto fazia parte de suas pregações pelo País.
Em vídeos no YouTube, é possível ver uma futura ministra que brada contra a discussão de temas relacionados a gênero nas escolas e diz que a educação sexual precisa ser autorizada pelos pais. Mas também que afirma que “os cristãos sempre acolheram os gays”. A retórica é simpática, eloquente e emocional.
Damares faz apresentações didáticas, com uso de slides. Um deles mostra um material feito pelo Ministério da Saúde sobre prevenção do HIV, com cenas de sexo. A evangélica afirma que ele foi mandado para escolas, “para crianças de 10 anos”. “Vocês não estão prestando atenção ao que está acontecendo com seus filhos nas escolas brasileiras”, dizia aos fiéis, anos antes de livros contra a homofobia, apelidados de “kit gay”, se tornarem tema das eleições.
Procurado, o Ministério da Saúde informou que o material é para adultos e “nunca foi distribuído às escolas”.
Aborto e gays
“Se a gravidez é um problema que dura só nove meses, o aborto é um problema que caminha a vida inteira com a mulher”, disse Damares, para desespero das feministas, em uma das suas primeiras declarações como futura ministra da Mulher. E, mais ainda, vai apoiar um projeto que dá direitos ao feto e restringe o acesso ao aborto legal.
A proposta foi vista como uma espécie de “bolsa-estupro” para mulheres que decidirem não abortar. Por outro lado, pediu semana passada para se reunir com grupos LGBT e se comprometeu em combater a violência contra os transexuais e sua empregabilidade.
O amigo e deputado federal Sóstenes Cavalcanti (DEM-RJ) conta que Damares é admirada no meio evangélico pela “dedicação para valorizar a vida, os direitos humanos e conservadores”. E é isso que a maioria do povo brasileiro quer, acredita ele. “Ela tem competência técnica e experiência para ser uma ministra em plena sintonia com Bolsonaro.”
Damares Regina Alves, de 54 anos, nasceu em Paranaguá, no Paraná, mas se mudou cedo para Sergipe. “Me autodeclaro sergipana por ser o lugar mais lindo do mundo”, disse, em mensagem de WhatsApp ao jornal O Estado de S. Paulo. Morou ainda na Bahia e São Paulo, acompanhando o pai pastor.
Formou-se professora e advogada. “Não esquece de colocar na matéria que, segundo pesquisas, sou a pastora mais bonita do Brasil, corintiana feliz e convicta.”
Em 1999, mudou-se para Brasília para trabalhar no gabinete do tio, o deputado e pastor Josué Bengtson (PTB-PA). Três anos depois de deixar a assessoria, em 2006, o parlamentar foi alvo da Operação Sanguessuga, acusado de desviar recursos para compra de ambulâncias. As ações prescreveram. Até 2015, quando começou a trabalhar com Malta, foi ainda secretária parlamentar de cinco deputados da bancada conservadora.
Índios
Damares é divorciada e adotou uma menina indígena, hoje com 20 anos, e quer adotar mais duas crianças. O abuso na infância a teria impedido de ter filhos. A garota foi salva do que ela chama de “infanticídio indígena” e que se tornou uma de suas principais causas. Ao conhecer mães que haviam fugido de aldeias porque discordavam da cultura de matar crianças com deficiências ou doenças graves, ela resolveu fundar uma ONG sobre o assunto.
“A batalha dela é pela vida. Já recebeu famílias indígenas em casa porque não tinham onde ficar”, conta a advogada Maíra Barreto Miranda, cofundadora da ONG Atini.
As duas lutaram na Câmara pela aprovação de uma lei para proteger as crianças indígenas. Mas um filme sobre o tema, coproduzido pela Atini, foi proibido de ser divulgado pelo Ministério Público Federal. O órgão entendeu que ele leva à discriminação do índio.
Ao jornal, Damares contou também que já está pensando em programas para prevenção da automutilação e do suicídio infantil. “Esse tema não teve o olhar dos gestores públicos. Os pais estão desesperados.”
Os casos de suicídios no Brasil têm crescido na faixa etária de 15 a 19 anos. Entre crianças, os números são baixos, com exceção das indígenas. “Ninguém é a favor do infanticídio indígena ou do suicídio infantil, mas isso não é um problema social pela dimensão. Criança sem atendimento médico, sim. Tribos que têm direito à terra e governante que diz que não vai demarcar, sim”, afirma o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ).
Para ele, a futura ministra não pode nortear as políticas públicas pelos seus interesses e dramas pessoais.
Segundo o assessor Luiz Carlos Bassuma, que trabalhou com Damares, pesou na decisão dela a transferência da Funai para a pasta que vai comandar. “Eu disse a ela: ‘você não buscou isso, não pleiteou, não pode negar’. É um chamado de natureza espiritual, para cumprir uma missão na nação.”
Pela falta de missionários evangélicos no Nordeste, Damares se tornou pastora muito jovem. Atuou primeiro na Igreja Quadrangular, da qual seu pai foi fundador, e hoje está na Igreja Batista da Lagoinha. Ambas são neopentecostais. “A igreja evangélica cresceu demais, amém, mas o que de fato está fazendo para mudar a sociedade?”, perguntava numa palestrava em 2013. Ela mesma dava a resposta. “Deus está nos preparando para uma nova fase, que é a transformação da sociedade.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.