Quando as reservas de mercado caíram e as importações foram liberadas no Brasil, uma artista plástica paulista chamada Eliana Tranchesi transformou uma butique chamada Daslu no templo do consumo de luxo para os muito ricos do País. Pouco mais de 10 anos se passaram e uma geração do topo da elite nacional formou seus gostos e estilos nos dois quarteirões mais exclusivos da América Latina, em um trecho sossegado à altura do número 500 da Rua João Lourenço, na Vila Nova Conceição, em São Paulo. Nesse período, o chamado mercado do luxo, com seus nomes franceses, design italiano e seus preços em dólares, estabeleceu-se em território brasileiro. Fez fortunas nos primeiros anos e rateou quando gerou expectativas exageradas. Agora, entrou em uma nova onda de crescimento que ameaça ganhar corpo nos próximos quatro ou cinco anos. Grifes internacionais de ponta registraram no Brasil, no primeiro semestre de 2003, taxas de expansão da ordem de 35% em relação ao mesmo período do ano passado. Não por acaso, a Daslu aparece novamente como abre-alas deste novo ciclo. Dentro de duas semanas, na abertura da Bienal de Arquitetura de São Paulo, Eliana apresenta ao País o projeto da ?nova Daslu?, um empreendimento já apelidado pelo mercado de ?mini-shopping dos milionários?. Trata-se de uma megaloja de 30 mil metros quadrados, a ser montada no menor dos esqueletos de concreto deixados pela Eletropaulo no bairro paulistano da Vila Olímpia. Com uma ampla seleção dos titãs da sofisticação em roupas e acessórios, demandará investimentos estimados pelo mercado em alguma coisa entre US$ 9 milhões e US$ 10 milhões.

Escudada como de costume por uma grife, no caso a do arquiteto Julio Neves, Eliana não projetou uma loja. Desenhou um palazzo, em estilo clássico italiano. Serão quatro andares de loja, com 5 mil metros quadrados cada, além de espaço para eventos e garagem para 750 carros no subsolo. O batalhão de grifes femininas importadas, que conta com Chanel, Dolce & Gabbana, Gucci, Hermès, Prada, Ralph Lauren e Valentino, entre outras, ocupará o térreo ? que também abrigará a parte infanto-juvenil. Ali, a presença de homens será admitida. No primeiro andar, não. É a tradicional área só para senhoras da Daslu. Em compensação, os cavalheiros serão bem-vindos ao segundo andar, onde ficarão as grifes masculinas e estantes de bebidas, som, carros, motos e, especula-se, helicópteros. O terceiro piso é para a Daslu Casa, as joalherias e o espaço para mostras de decoração. Finalmente, no quarto, salões para eventos, um spa, cabeleireiros e massagistas. O prédio certamente contará com amenidades como bar, antiquário e restaurante ? possivelmente o L?Avenue, de Paris.

Por ser um badalado empreendimento comercial em um bairro residencial, contrariando a Lei de Zoneamento, a Daslu, em seu endereço atual, incomoda a vizinhança e provoca embates com as autoridades há anos. Enquanto os ultimatos da Prefeitura e do Ministério Público se sucediam, Eliana vinha se dedicando à busca de um imóvel conveniente em uma área comercial. De tanto procurar, trombou com o Banco Português de Negócios, uma instituição que em novembro último recebera autorização do Banco Central para funcionar no Brasil e, no mês seguinte, comprara o prédio inacabado da Eletropaulo por R$ 141,6 milhões. O projeto do BPN desde o início era fazer daquele esqueleto um centro empresarial. ?Nesses casos, a experiência mostra que o jeito de locar o prédio é ter uma âncora?, ensina o veterano consultor de imóveis Marcelo Gurgel. Certo, mas um prédio de luxo de proporções gigantescas como esse exige um chamariz igualmente grande e pomposo, capaz de aglutinar as principais marcas estrangeiras do chamado mercado de luxo. Diante dessas exigências, não havia opções. Era a Daslu ou adeus mini-shopping dos milionários. Foi assim que os destinos da loja e do banco se uniram em um empreendimento projetado para ser um rival mais sofisticado do Shopping Iguatemi.

O negócio é visto no mercado imobiliário como ?uma boiada? para a Daslu. Na condição de isca para atrair não só as grifes da moda, mas restaurantes, cabeleireiros, hotéis e spas, a butique deve contar com, no mínimo, cinco anos de carência antes de começar a pagar aluguel para o BPN. O valor da locação, como aliás todo o restante do projeto, é mantido em sigilo. Eliana prefere não falar sobre o negócio, mas DINHEIRO apurou que, em condições normais, a Daslu pagaria algo em torno de
R$ 120 mil por mês para ocupar 30 mil metros quadrados naquela região, mas ninguém acredita que nesse negócio sejam praticados preços de mercado. Mesmo para os outros ocupantes do nascente condomínio, calcula-se que o desconto em relação aos aluguéis cobrados pelo Iguatemi sejam de até 50%.

Empresarialmente, o passo dado por Eliana é extremamente importante. E arriscado. O mini-shopping de luxo não decola sem a Daslu, mas, uma vez dentro do projeto, a Daslu não sobrevive sem o mini-shopping de luxo. O desafio, para fazer deste projeto gigante um projeto rentável, é conquistar parceiros e, literalmente, ocupar espaços. Há três ou quatro anos, isso não seria problema. Hoje, pode ser. Sente-se no mercado um certo descontentamento das grifes de luxo com o crescimento da marca própria da Daslu, cujo faturamento já é estimado pelo mercado em US$ 110 milhões. Ciúme? Pode ser, mas algumas delas começam a se sentir desconfortáveis com o ?monopólio do luxo? exercido pela loja. ?Elas estão despertando para o fato de que existe vida fora da Daslu?, descreve um consultor especializado no setor. Marcas exclusivas da butique avaliam que a Daslu foi fundamental no processo de entrada no mercado brasileiro, nos anos 90, mas não querem ficar presas a ela para sempre.

Por trás deste desejo de liberdade está o bom momento atravessado pelo segmento. Em seminário organizado pela Câmara Americana de Comércio no mês passado, quando foi apresentada uma pesquisa sobre o consumo no topo da pirâmide social brasileira, o Brasil foi caracterizado como o segundo mercado de produtos de luxo que mais cresce no mundo. Considerando-se de automóveis a canetas, passando por imóveis e obras de arte, atribuiu-se aos bens de consumo destinados ao clube do 1% mais rico do País a movimentação anual de R$ 120 bilhões. O número, porém, é considerado exagerado por empresários do meio.

Apesar da taxa de juros, falta de crédito e das oscilações do câmbio, 2003 tem sido um bom ano para as grifes de luxo no Brasil. A Christian Dior superou em 38% a meta de vendas para o primeiro quadrimestre, a Montblanc prevê crescimento de 10% para 2003 e o grupo LVMH espera crescer entre 15% e 18% até o fim do ano. André Brett, representante das marcas Armani e Ermenegildo Zegna no Brasil, tem números excepcionais para apresentar à Itália. A grife Zegna registrou crescimento de 72% em suas vendas nos primeiros sete meses do ano. No mesmo período, o Empório Armani cresceu 48%. Ambas as marcas oferecem ternos que custam a partir de R$ 2,5 mil e não raro chegam aos R$ 10 mil.

Se os muito ricos estão gastando mais, que se abram mais lojas
para eles. Em outubro, São Paulo ganha novas lojas da Tiffany?s
(a segunda) e da Montblanc (a sétima). Para elas, a crise econômica não é problema. ?A compra de uma jóia marca ocasiões especiais. E ocasiões especiais acontecem haja crise ou não?, diz Laura Pedroso, representante da Tiffany?s. Numa ocasião especial dessas, em maio, um cliente arrematou um colar de pérolas negras do Taiti por cerca de R$ 1 milhão. Freddy Rabbat, diretor-executivo da Montblanc, confirma: na faixa de preços que varia de US$ 5 mil a US$ 40 mil não há crise. Mesmo em setores duramente atingidos pela falta de crédito, como a indústria automobilística, o topo da pirâmide passa ileso pelos momentos difíceis. O mercado de carros importados pode estar em baixa, mas as vendas de Ferraris seguem em velocidade de cruzeiro rumo à meta anual de 40 unidades negociadas. Viviane Polzin, diretora da Via Europa, que representa a mítica marca italiana no Brasil, diz que não só os modelos mais ?acessíveis? da Ferrari ? na casa dos
US$ 300 mil ? vendem bem, como três unidades do modelo 575 Maranelo, que custa a bagatela de US$ 480 mil, foram trazidos sob encomenda e entregues na garagem de felizes milionários. É este alegre consumismo em escala mastodôntica, este momento de efervescência do consumo classe AA+ que os empresários como Eliana Tranchesi querem capitalizar.