20/01/2019 - 8:51
Ao longo dos últimos 40 anos, o fenômeno da globalização encontrava na pequena e afastada cidade de Davos, nos Alpes suíços, seu porto seguro. Nenhum movimento de oposição parecia chegar até lá. Nem os protestos antiglobalização do final dos anos 90, que pararam Seattle, nem o sucesso momentâneo do Fórum Social de Porto Alegre e a crise financeira de 2008 conseguiram tirar a capacidade do Fórum Econômico Mundial de ser o palco de encontro da elite financeira mundial e de, nos bastidores, desenhar o que seria o sistema internacional.
Na edição deste ano, que começa amanhã, o vilarejo aos pés da Montanha Mágica de Thomas Mann vive o que muitos acreditam ser o maior questionamento feito contra o sistema. A ameaça, porém, não vem de ativistas ou ONGs defensoras de um mundo sem fronteiras. Mas de uma espécie de revolta nas urnas e nas ruas que levou ao comando de diversos países partidos com discurso nacionalista e políticas populistas.
Se em alguns lugares esse mal-estar já levou novos grupos ao poder, em outros, como na França, ainda ocupa as estradas do país, na figura dos coletes amarelos. Em diferentes línguas e realidades, o tom tem sido o mesmo: os perdedores da globalização não encontram respostas nas políticas tradicionais e as alternativas que ganham terreno apontam para um caminho bem diferente do que Davos vinha pregando.
No ano passado, o evento já recebeu o presidente americano, Donald Trump, que usou o palco para garantir que seu governo focaria em seu slogan “America First” (Primeiro a América). Curiosamente, foi um comunista, o presidente da China, Xi Jinping, que surgiu como a pessoa que poderia “salvar” o sistema multilateral. Neste ano, o Fórum terá como destaque o presidente Jair Bolsonaro, em sua estreia internacional.
Agora, o discurso de defesa da soberania já migrou da esfera comercial para também pôr em xeque as instituições criadas depois da 2.ª Guerra Mundial e que, segundo especialistas, garantiram a estabilidade global por mais de sete décadas. Hoje, governos falam abertamente no questionamento da existência da Organização Mundial do Comércio (OMC), em desmontar blocos que pareciam sólidos, além de levantar dúvidas sobre a necessidade de acordos internacionais sobre clima, migração e direitos humanos.
Ameaça
Em Davos, há um reconhecimento, pela primeira vez, de que o descontentamento global é uma ameaça. Mas seus gurus tentam imprimir uma proposta de reforma que mantenha alguns dos principais pilares da globalização, entre eles a abertura dos mercados. Não é por acaso, portanto, que o tema de Davos neste ano é a “Globalização 4.0 – Moldando a arquitetura global na era da 4.ª Revolução Industrial”.
Num “manifesto” que serve de base para os debates desta semana, o fundador do fórum, Klaus Schwab, tenta dar uma resposta à crise, apontando para um novo caminho. No lugar do mantra da “cooperação internacional”, o ideólogo de Davos fala agora em “coordenação”.
“Isso significa chegar aos mesmos objetivos, enquanto se dá liberdade para diferentes visões nacionais, conceitos e valores”, explicou. Segundo ele, a “coabitação no mundo hoje deve estar baseada em interesses compartilhados, e não em valores compartilhados”. Sua manobra conceitual é interpretada como uma tentativa de acomodar a globalização aos anseios nacionalistas atuais.
Nessa nova estratégia, Schwab insiste que as atuais instituições já estão ultrapassadas. Uma mera reforma, porém, não será suficiente. Colocar, por exemplo, um curativo na atual guerra comercial não dará resultados e Davos acredita que chegou a hora de um novo sistema. “Precisamos repensar nossas instituições globais, que foram criadas há quase 70 aos, e adaptá-las para garantir que sejam relevantes em nosso contexto”.
“Depois da 2.ª Guerra Mundial, líderes se uniram para criar a estrutura global para viver juntos num ambiente de paz, segurança e prosperidade”, escreveu Schwab. “Eles desenharam as organizações e os processos institucionais para atingir isso. Desde então, o mundo mudou e precisamos de uma nova forma de, juntos, moldarmos nosso futuro global”, disse. “Reformar nossos processos e instituições não será suficiente. Precisamos redesenhá-las.”
Perdedores
O guru de Davos e fundador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, admitiu que a globalização também trouxe perdedores. “A globalização produziu ganhadores e perdedores. Existem mais ganhadores nos últimos 30 anos. Mas agora precisamos olhar para os perdedores, aqueles que não conseguiram acompanhar o processo”, disse. “Precisamos de uma globalização mais inclusiva.”
Para Schwab, o mundo tem algumas opções. Uma delas é a de proteger aqueles que perderam, estratégia que tem sido usada por governos populistas em diferentes partes do mundo. Isso, segundo ele, traria “vantagens políticas de curto prazo, mas criaria o palco para a erosão da competitividade”. A outra opção, defendida por ele, é a de abraçar as mudanças, se preparar para ganhar com elas e “preservar a abertura” dos países.
Richard Kozul-Wright, diretor da Divisão sobre a Globalização da Conferência da ONU para o Comércio, não tem dúvidas de que o momento é o de maior questionamento do atual sistema internacional. “Eles (Davos) estão preocupados e estão, finalmente, falando sobre outra economia”, disse.
Todos os dados mostram, porém, que a atitude dos governos não segue o “mapa” criado por Davos. No fim de 2018, o número de medidas protecionistas adotadas pelas maiores economias bateram recorde e as novas barreiras já atingem um comércio equivalente a US$ 481 bilhões.
Schwab e a cúpula da ONU concordam: falta uma liderança mundial para reverter a atual tendência populista e nacionalista. Davos, portanto, se apresenta como candidato para ser o palco dessa discussão. Mas Kozul-Wright alerta: “A reforma não virá daqueles atores que, por tantos anos, ganharam tanto com o sistema”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.