18/06/2003 - 7:00
Junho de 1903. Uma pequena fábrica em Michigan, nos Estados Unidos, trabalha a todo vapor para lançar o seu primeiro carro: o modelo A. O clima está tenso e a discussão sobre a cor do automóvel toma conta do local. Os engenheiros não sabem o que fazer e perguntam para o proprietário Henry Ford. Ele logo responde. “Pode ser qualquer cor desde que seja preto”, disse Ford. Assim nasceu o ícone do automobilismo, a primeira linha de montagem e o primeiro carro acessível à classe média. Junho de 2003. Uma cena, aparentemente banal, servirá de marco às mudanças que acontecem na Ford, a segunda maior montadora do mundo. Na segunda-feira, 16 de junho, trabalhadores vão tirar da fachada da empresa, em Dearborn, nos arredores de Detroit, Estados Unidos, uma grande placa com a inscrição Ford Motor Company. No seu lugar pretendem colocar um novo cartaz. Trata-se do logotipo original da Ford, aquele oval com o nome da companhia ao centro. O que poderia passar despercebido é extremamente simbólico. Primeiro, porque um século depois de ser fundada ela volta às suas origens. O segundo fator é que a antiga placa é o resquício de uma época que a família Ford pretende esquecer. Ela foi instalada sob ordens de Jack Nasser, o antigo CEO, que acumulou sucessivos prejuízos nos últimos anos (US$ 13 bilhões só com danos e queda das ações devido ao recall dos pneus Firestone).
Agora os tempos são outros. Há quase dois anos no comando da empresa, fundada por seu bisavô, William Clay Ford Jr., ou Bill Ford, como gosta de ser chamado, está guiando a empresa para
estradas mais seguras. Transformou o prejuízo de US$ 1,1 bilhão no primeiro trimestre de 2002 num lucro de US$ 896 milhões no mesmo período deste ano. “No fim da década de 90, nos distraímos e perdemos uma parte do enfoque em nossos negócios básicos, mas isso não acontecerá novamente”, disse Bill Ford à DINHEIRO.
Onda de carros. O executivo alcançou o posto número um da Ford, uma gigante com faturamento de
US$ 163,4 bilhões, em 2002, depois de uma série de desentendimentos com Jack Nasser. Um era o oposto do outro. Nasser, por exemplo, quis diversificar os negócios e chegou a comprar uma rede de autopeças. Bill Ford, cujo sobrenome carrega uma espécie de DNA industrial, queria apostar em carros. Seu bisavô, Henry Ford, praticamente inventou a linha de montagem e a produção em série. O nome da família está intrinsecamente ligado a tudo que se produz em cima de quatro rodas. Por isso mesmo quando Bill Ford sentou na cadeira de CEO, pôs em prática a centenária lição de Henry e voltou-se para a produção de veículos. “Lançamos a maior onda de novos automóveis da nossa história.” Somente no Salão de Automóveis de Detroit, que aconteceu no fim de 2002, foram 15 modelos. Além de novos produtos, Bill teve de reajustar a companhia às altas taxas de ociosidade da indústria automobilística que chega 20 milhões de unidades. Realizou uma mega-reestruturação que culminou no fechamento de fábricas e 35 mil demissões. Somente agora Bill começa a respirar aliviado.
Depois da tensão dos últimos anos, numa batalha com acionistas e sindicatos, ele revigorou as energias e traçou uma meta: fazer com que todas as operações dêem lucro. Na América do Sul, por exemplo, o balanço ainda não está no azul, mas melhorou em relação ao ano passado. Enquanto em 2002 o prejuízo do primeiro trimestre foi de US$ 85 milhões, o número apresentado este ano foi de US$ 31 milhões negativo. A subsidiária brasileira também marcou pontos ao lançar o utilitário Ecosport e o Fiesta, em nova versão. Segundo dados de mercado, de janeiro a maio as vendas da Ford cresceram 29,7% e a participação de mercado saltou de 6,9% para 9,7%. Aliás, foi a única montadora a crescer. “Este é o ano da virada da Ford no Brasil”, diz Antonio Maciel Neto, presidente da Ford no País.
“COLOCAMOS O MUNDO SOBRE RODAS” |
William Clay Ford Junior, de 46 anos, é a quarta geração da lendária família do setor automotivo. Seu bisavô, Henry Ford, praticamente inventou a indústria automobilística e a linha de montagem, num modo de produção conhecido como fordismo. Aos 100 anos de idade, a empresa continua nas mãos da dinastia Ford, dona de 40% das ações. William Jr., ou Bill, como é chamado, é o atual comandante da empresa que faturou US$ 163,4 bilhões em 2002. Do seu escritório, em Detroit, concedeu a seguinte entrevista à DINHEIRO: DINHEIRO – Nesses 100 anos, o que a Ford representou
E para o senhor, pessoalmente, o que significa esse centenário?
O que o senhor prevê para os próximos 100 anos? Em outros termos: qual é o futuro dos carros?
O que eles mudariam na indústria?
Quais são os principais obstáculos enfrentados pela companhia hoje?
Como fazer isso?
Depois de anos acumulando prejuízos, a Ford atingiu o lucro de US$ 896 milhões no 1º trimestre deste ano. Como conseguiu atingir esse número?
Como funciona essa estratégia?
O que estava errado na Ford?
Qual é o maior desafio da Ford e da indústria automobilística?
|
O executivo, conhecido por levantar empresas em dificuldade, tem uma dura missão: fazer com que a companhia reviva os áureos tempos do início da década de 90, quando tinha 20% do mercado. Para isso, pôs em prática um amplo plano de reestruturação cuja ponta de lança se deu com a inauguração da nova fábrica em Camaçari, na Bahia. A planta consumiu investimentos de mais
de US$ 1,5 bilhão e converteu-se no centro tecnológico
da companhia no continente. “Temos mais de 300 engenheiros trabalhando lá”, diz Maciel.
Popstar. Na estratégia arquitetada pelo executivo, os projetistas foram essenciais, pois desenharam novos produtos ” caso do Ecosport ” e redesenharam os antigos, como aconteceu com o Fiesta. Outra decisão crucial foi mudar a rede de distribuição. Os 500 pontos-de-venda passaram a 417 hoje. Ou seja, deixou de existir concentração de lojas numa mesma região. “Agora estamos em regiões onde não estávamos”, diz João Carlos Félix, presidente da Abradif, associação que representa os concessionários Ford. Por fim, a Ford tratou de rejuvenescer a marca. E Maciel arregaçou as mangas. Filmou cinco comerciais onde era a estrela principal. Oferecia R$ 200 para quem fizesse um test-drive com um Ford e comprasse o carro da concorrência. “Tinha gente que me parava na rua e dizia que me conhecia de algum lugar”, relembra o executivo.
Maciel vive uma fase popstar mas ainda tem muito por fazer. A Ford no Brasil ainda não atingiu lucro. “Ele está fazendo a lição de casa correta. Os problemas são macroeconômicos”, diz Mauro Zilbovicius, professor da Universidade de São Paulo e especialista em indústria automobilística. Dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) apontam que a capacidade de produção das montadoras é de 3,2 milhões de unidades por ano. Estimativas de mercado mostram que as vendas internas neste ano chegarão a apenas 1,4 milhão de unidades, o que é muito pouco.
“O ideal seria um mercado de mais de 2 milhões de unidades”, diz Richard Canny, presidente da Ford para a América do Sul. A saída é exportar. Nessa área a empresa tem se saído bem. De 99 para 2002, as vendas externas cresceram 100%. Saltaram de US$ 267,2 milhões para US$ 546,8 milhões. Para este ano, o incremento deve ser de 15%. “Mesmo assim isso não é suficiente para justificar os nossos investimentos”, diz Maciel. A solução? “O País tem que crescer.”