Denúncias apresentadas ao Supremo Tribunal Federal contra manifestantes dos atos golpistas ignoram as condutas individuais e são redigidas em bloco, com textos idênticos. A Procuradoria-Geral da República sustenta a legalidade da medida. Juristas, defensores públicos e advogados, no entanto, apontam para o risco de violações de direitos fundamentais e garantias dos investigados.

Embora cada participante dos ataques ao Palácio do Planalto, ao STF e ao Congresso responda a uma ação de forma individualizada, separadamente, há uma divisão nas denúncias em pelo menos dois lotes.

No primeiro, estão os detidos no dia 8 de janeiro, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. No segundo, aqueles que foram presos no dia seguinte, no acampamento na frente do Quartel-General do Exército.

Ao Estadão, o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, coordenador do grupo que investiga e apresenta denúncias contra os manifestantes, afirmou que a medida é possível porque os delitos foram praticados por uma multidão – os chamados crimes multitudinários. “A jurisprudência admite a narrativa genérica da participação de cada agente”, disse Santos.

Essa estratégia apontada como excepcional por juristas foi percebida pelos defensores públicos da União que acompanham cerca de 250 manifestantes que não têm condições de pagar um advogado particular. Ao todo, são 1.406 investigados. “Há alguns padrões de acordo com cada situação. Quem ingressou em órgão público, quem não ingressou, quem estava no QG”, disse Gustavo Ribeiro, coordenador da equipe de defensores.

“Quem foi filmado colocando fogo, por exemplo, em uma sala do Senado, jogando uma obra de arte no chão, essa pessoa sabe que estragou um patrimônio do Brasil. Agora, e a pessoa que estava no QG sentada, cantando, jogando cartas com os amigos?”, questionou o defensor público.

Os casos que estão sob a tutela da Defensoria Pública da União estão começando a chegar ao órgão para a apresentação da primeira etapa de defesa. Ribeiro disse esperar que “a Justiça saiba separar o que é mais grave do menos grave”.

Crimes

Segundo o advogado Jean Cleber Garcia, que representa quatro manifestantes detidos, quem estava na frente do QG do Exército é acusado de incitação ao crime e associação criminosa. Já quem foi preso nos edifícios ou na Praça dos Três Poderes é denunciado por abolição violenta do estado democrático de direito, dano qualificado (por se tratar de crime contra patrimônio público) e dano contra bem tombado, além de associação criminosa. “Não está ocorrendo a individualização da conduta”, afirmou Garcia.

No dia 27 de fevereiro, a PGR divulgou uma nota confirmando o apontamento desses crimes nas denúncias. Porém, o princípio da individualização da conduta está previsto no Código de Processo Penal e na Constituição. “Toda pessoa tem o direito de saber exatamente qual é o fato que está sendo imputado a ela e qual a classificação jurídica disso”, afirmou Maíra Zapater, professora de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“Se estamos falando em preservar a democracia e preservar o direito das pessoas, as garantias da Constituição têm de ser preservadas, ainda que isso implique, como consequência, não conseguir punir. Não violar direito dos acusados tem de estar acima de uma punição a qualquer preço”, disse Zapater, que é doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP).

Para especialistas, a regra da individualização da conduta tem sido flexibilizada no caso dos manifestantes detidos em Brasília, o que acende um alerta para a possibilidade de abusos. O advogado criminalista Pedro Paulo de Medeiros, pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, disse que se trata de uma “situação-limite” e explicou o caminho teórico da medida: “Há atos ou fatos cometidos por grupos ou multidões, os chamados ‘crimes de autoria coletiva’, em que não se consegue individualizar pormenorizadamente as condutas dos integrantes”.

Estrutura

Existe uma dificuldade operacional no caso dos atos golpistas. O último balanço do Supremo, divulgado na sexta-feira passada, afirma que 522 pessoas continuam presas – o restante responde às acusações em liberdade, com uso de tornozeleira eletrônica. Todas estão incluídas em inquéritos sigilosos que tramitam no gabinete do ministro Alexandre de Moraes. O processo em que estão sendo feitos os pedidos de liberdade tem 14 mil movimentações.

Quando um processo criminal tramita na Justiça comum, o recebimento da denúncia (momento em que se avalia se o processo penal pode, de fato, ser instaurado) é uma decisão do juiz. Contudo, de acordo com o regimento interno do Supremo, cada uma das ações penais que estão sendo propostas contra os manifestantes precisará passar pelo plenário da Corte, presencial ou virtual.

Na quinta-feira passada, Moraes afirmou, no plenário do STF, que todos os casos serão analisados de forma “detalhada e individualizada”. “Aquele que praticou crime mais leve terá sanção mais leve, aquele que praticou crime mais grave terá sanção mais grave, e aquele que não praticou, eventualmente o nome constou e não houver provas disso, será imediatamente solto e absolvido”, disse.

Novas denúncias

O Estadão indagou ao Ministério Público Federal se, pela forma como as denúncias estão sendo ofertadas, pode ocorrer violação de direitos fundamentais. Santos, da PGR, respondeu que, “em todas as etapas do processo apuratório, o Ministério Público Federal respeitou a garantia da ampla defesa e do contraditório”, previstos na Constituição. “Assim, as denúncias não violam direitos e garantias fundamentais”, disse o subprocurador-geral.

Santos afirmou que há a possibilidade de que, diante de novos elementos, o MPF ofereça novas denúncias ou adite (termo jurídico para incluir novos argumentos e pedidos) as que já foram apresentadas.