Por Paula Cristina

RESUMO

• Governo quer estimular economia com um programa do tipo “Desenrola para empresas” e assim aumentar a arrecadação
• Parlamentares constroem proposta para aliviar dívidas de empresas, que em 2022 somaram R$ 1,6 trilhão
• Projeto do governo busca renegociação de dívidas tributárias para recuperar R$ 2,7 trilhões (dados de 2021) em débitos
• Redução do número de empresas na lista suja do governo poderia trazer incremento de arrecadação de até R$ 43 bilhões em 2024
• Ministro Márcio França sugere Desenrola para empresas de pequeno porte
• Analistas alertam para a possibilidade de parlamentares buscarem aumentar benefícios e descontos para empresas de grande porte
• Risco: se mal administrada, iniciativa pode se transformar numa transferência de dívida do mundo privado para o setor público

 

O Brasil vive mais um momento que a matemática define como aquele que antecede o ponto de inflexão – o instante exato para que uma curva mude de direção. No caso brasileiro, duas curvas. A da União, que precisa aumentar a arrecadação para buscar sanidade fiscal. A das empresas privadas, endividadas, que buscam soluções para ganhar fôlego. O resultado desse movimento conjugado tem forte capacidade de estimular a economia. “Não adianta desenrolar a vida das famílias junto aos credores privados se não ajudarmos também as empresas a resolverem os seus problemas”, disse o vice-presidente Geraldo Alckmin. Segundo ele, existe a necessidade de um trabalho que una o Executivo e o Legislativo para promover soluções para o mundo produtivo privado. “Há agora uma oportunidade boa para melhorar o ambiente de negócios.” Ele refere-se ao combo formado por Reforma Tributária, redução da Selic e um PIB menos sonolento.

Para não desperdiçar mais uma chance histórica, como é a sina deste País, está na mesa um Desenrola para as empresas. Na carona do Desenrola para pessoas físicas (com dívidas até R$ 20 mil, na primeira fase) – lançado em outubro, com pouco mais de um mês de vida já se mostrou um sucesso –, o novo projeto é desenhado a quatro mãos.

No Congresso e no Executivo. Entre os parlamentares, uma proposta para aliviar as dívidas entre empresas, que em 2022 somaram R$ 1,6 trilhão. No governo, o caminho é a reconstrução de um programa de renegociação de dívidas tributárias para tentar recuperar parte de um débito que ultrapassou os R$ 2,7 trilhões em 2021 (dado mais recente). Mais que regularizar a vida dos inadimplentes, os dois pacotes amplificam a liquidez do mundo corporativo e paralelamente reforçam o caixa do governo.

Ao lado dessa luta de Alckmin está Márcio França, agora ministro do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, que tem defendido publicamente um Desenrola voltado aos empresários desses segmentos.

“Temos conversado com o ministro Fernando Haddad, e a orientação do presidente Lula é que a gente siga em frente”, disse França. Segundo ele, as costuras com instituições financeiras públicas e privadas já começam a acontecer.

“Precisamos facilitar o acesso ao crédito e vamos conseguir isso com o Marco das Garantias. Mas é necessário tirar o nome das empresas do Serasa.” A ideia do ministro é que em 2024 o alívio para pessoas jurídicas esteja em cena.

Márcio França, Ministro das PMEs

“Temos conversado com o ministro Fernando Haddad, e a orientação do presidente Lula é que a gente siga em frente.”
Márcio França, ministro das PMEs

No Legislativo, o nome por trás do Projeto de Lei (PL) que cria o Desenrola para pessoas jurídicas é o do deputado Jorge Goetten (PL-SC). “O plano é dar uma condição de renegociar, com carência e um desconto que seja atrativo, e assim permitir um respiro aos empresários e estimular o ambiente de negócios”, afirmou.

O esboço do projeto fala em dívidas de até R$ 150 mil, com desconto de pelo menos 50%. Isso seria uma espécie de extensão do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), criado em 2020, na pandemia de Covid-19, para facilitar a tomada de crédito por essas companhias.

Segundo o projeto, haveria lastro do Fundo de Garantia de Operações (FGO), que usa recursos do Tesouro Nacional para avalizar as negociações. Sobre a probabilidade de aprovação, Goetten diz achar que haverá uma tramitação boa no Legislativo. “Na Câmara a gente não vai ter dificuldade. Estamos montando várias frentes que se conectam com a micro e pequena empresa.”

Geraldo Alckmin e Fernando Haddad estudam formas de elevar a arrecadação, mas descartam uma nova edição do Refis. Plano é focar no programa Litígio Zero, que segue aberto até dezembro

Claro que tudo é mais complexo do que as boas intenções sugerem. Para o jurista Ives Gandra Martins, a iniciativa da Câmara pode se tornar um problema para as contas públicas se não for desenhada com muita cautela. “Se o governo cobrir o diferencial de juros da Selic, respeita-se a essência de uma economia de mercado, que é a da propriedade e do contrato, mas isso significa que o governo terá de gastar ainda mais num orçamento profundamente desequilibrado”, afirmou.

E esse perigo é real. Dentro da Câmara há uma ala interessada em ampliar os benefícios e descontos para empresas de grande porte, sob o argumento de que a alta da Selic tem inviabilizado o desenvolvimento dos negócios.

Os deputados do Republicanos estariam articulando com o presidente da Câmara, Arthur Lira, a criação dessa alternativa, mas ainda não há sinalização se o conteúdo seria enviado como projeto de lei separado ou incluído no texto de Goetten.

E esse não é o ponto decisivo. Seja restrito a pequenas empresas ou extensivo a todas as empresas, incluindo as grandes, o problema existirá se o projeto se tornar somente uma transferência de dívida do mundo privado para o setor público.

ARRECADAÇÃO

O Desenrola de empresas cria paralelamente espaço para outro tipo de renegociação, a das pessoas jurídicas com o governo. Em 2021, as dívidas tributárias das companhias brasileiras ultrapassaram R$ 2,7 trilhões, segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), número que tem crescido em média 8% ao ano desde 2013.

Para frear esse crescimento, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem reunido esforços e equipes. A ideia de uma nova versão do Refis parece não atrair a equipe econômica, sob o argumento de que o modelo incentiva a inadimplência programada, e as empresas pulam de um Refis para outro esperando melhores descontos.

Por isso a alternativa é a criação de novas regras transacionais para a PGFN e a Receita Federal, que cruze dados e use inteligência artificial para evitar infrações.

Com isso, poderia existir incremento de arrecadação de até R$ 43 bilhões em 2024. O plano de mudar a forma como se transaciona os tributos entraria no bojo do projeto de lei que retomou o voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

O governo espera reduzir o número de empresas que hoje estão na chamada lista suja. São 4,8 milhões em um universo de 7 milhões de CNPJs. Como o processo de cobrança atual é demorado, 45% das dívidas são consideradas irrecuperáveis pela própria PGFN. São casos, por exemplo, em que a empresa foi à falência.

Mas existem também os casos de empresas que usam estratégias fraudulentas para não pagar dívidas tributárias e previdenciárias, como trocas de CNPJ e ocultação de patrimônio.

Deputado Jorge Goetten (acima) defende Desenrola a empresas com dívidas de até R$ 150 mil. Ives Gandra (abaixo) alerta para a piora das contas públicas se governo for fiador do desconto (Crédito:Luciele Velluto)
(Aloisio Mauricio)

Para isso, o Legislativo também busca uma solução e tem trabalhado uma lei que crie regras mais rígidas para cobrar os chamados devedores contumazes, aqueles que têm mais de R$ 15 milhões em aberto e apresentam indícios de fraudes.

Será preciso uma costura inteligente para evitar que as boas ideias não passem disto: ideias. E colocar o tema do endividamento das pessoas jurídicas na agenda pode inclusive fazer andar iniciativas que não decolaram, como o Litígio Zero, anunciado por Haddad em janeiro e que tem sua adoção postergada consecutivamente pela falta de adesão desde então.

A medida vale para todos os portes de empresa que queiram renegociar dívidas de baixo valor com o Fisco (até 60 salários-mínimos). O desconto varia entre 40% e 50% sobre o valor total do débito, incluindo tributos, juros e multa.

De acordo com Haddad, o programa é mais profundo que um Refis. “Diferentemente do Refis, o plano aqui é chamar o contribuinte para negociar e encerrar o litígio”, disse.

Segundo ele, a transação permite que o poder público dê descontos não lineares ao débito, “relacionados à qualidade do crédito desse contribuinte e à capacidade de pagamento desse mesmo contribuinte”.

Apesar do plano inicial ser promissor, o governo renegociou apenas R$ 3,2 bilhões até agosto. A ideia era superar R$ 20 bilhões até maio. Depois de três ampliações de prazo para adesão, a nova data é 31 de dezembro.

Todo esse esforço para renegociação de dívidas pode ser o ponto de inflexão que inverte a tendência de aumento na inadimplência e no endividamento.

Mas ainda faltam estudos de viabilidade, cálculos e projeções para sustentar tais ambições. Para isso, uma frase do gênio alemão Johann Wolfgang Goethe pode ser decisiva: “No campo das ideias tudo depende do entusiasmo. No mundo real, tudo depende da perseverança.” E essa bola está em Brasília.